Todos sabemos que o pior pedófilo é sempre o ‘melhor amigo’ das crianças. Os tarados que abusam de crianças inocentes de forma compulsiva, durante anos a fio, só conseguem os seus intentos porque funcionam numa lógica de confiança.

Podem ser os melhores amigos dos pais das suas vítimas (ou, num extremo de perversidade, até os próprios pais delas), mas também podem ser os seus tios ou primos. E claro que podem ser professores, explicadores, treinadores, tutores, mentores, psis, padres, médicos e um sem número de possibilidades. Tantas quantas as vocações ou profissões que derem acesso fácil e credível às suas presas para poderem actuar sem gerar desconfiança.

Larry Nassar, casado e pai de 3 filhas, era médico da selecção norte-americana de ginástica. Tinha poder e, aparentemente, achou que também tinha imunidade. Durante décadas abusou de centenas de jovens ginastas, muitas delas quando ainda eram crianças. Apesar de algumas se terem queixado dos abusos que sofriam, a Universidade de Michigan State e a Federação de Ginástica abafaram as suas queixas. Esta infame cumplicidade deu a Nassar uma ilusão de impunidade e, também por isso, os seus crimes demoraram a ser descobertos.

Passados demasiados anos, o mundo inteiro ficou suspenso da coragem de uma centena de jovens mulheres que conseguiram depôr em tribunal, enfrentando o grande velhaco nos olhos, para contarem finalmente tudo aquilo que as fez sofrer. Os testemunhos foram extraordinariamente dolorosos de expressar, mas também foram muito difíceis de suportar por quem assistiu.

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Em directo ou em diferido fomos ficando cada dia mais conscientes da monstruosidade dos actos de Larry Nassar. Muitas das antigas atletas choraram enquanto falavam, mas nenhuma se calou e todas fizeram questão de olhar para o homem que acusavam. Nassar, esse, recusou-se a enfrentar as suas vítimas e manteve a cabeça sempre baixa. No segundo dia de julgamento chegou a escrever uma carta à Juíza a pedir para ser dispensado das audições por não suportar o flagelo das declarações das suas vítimas, mas Rosemarie Aquilina indeferiu o pedido, argumentando que “pode achar severo estar aqui a ouvir, mas nada é tão severo como aquilo que as suas vítimas suportaram durante centenas de horas às suas mãos. Passar quatro ou cinco dias a ouvir o que têm para dizer agora é menor, considerando as horas de prazer que teve à custa delas, arruinando as suas vidas”.

Nassar foi obrigado a ouvir 89 depoimentos entre quase 160 acusações e não voltou a levantar a cabeça nem os olhos. Numa triste figura, vestido de fato-macaco azul, algemado, ombros caídos, óculos meio tortos e o ar mortificado de quem tem absoluta consciência da sua culpa, Nassar deu uma imagem que é certamente o inverso da que passou durante mais de 20 anos, quando era o super poderoso médico da selecção, abusando consistentemente de crianças e jovens a coberto da aura e dos privilégios que tinha. Nessa altura todo ele devia ser confiança, cortesia e amabilidades, pois só assim se compreende porque é que tantos pais, familiares, amigos e instituições acreditaram mais nele do que em quem se queixava dele.

O asco que este homem provoca é indescritível e percebem-se não só as condenações, como os considerandos da Juíza. Em Dezembro passado foi condenado a 60 anos de prisão por posse de mais de 7 mil imagens de pornografia infantil, mas agora enfrenta um cúmulo de 175 anos na cadeia. Ou seja, nunca mais de lá sai e esse facto foi cruamente sublinhado por Rosemarie Aquilina quando disse: “assinei a tua sentença de morte”.

Este julgamento diz muito sobre a importância da celeridade de certos processos, mas também sobre a essência do jornalismo de investigação, pois este caso só foi denunciado porque o Indianapolis Star começou há 2 anos a investigar como é que a USA Gymnastics lidava com alegações de abuso sexual dos treinadores. Na altura, a antiga ginasta Rachael Denhollander alertou os reporteres para os abusos de Nassar e foi o princípio do seu fim.

Não é só Larry Nassar que se afunda neste navio. Todos os directores da equipa norte-americana de ginástica foram afastados e o próprio presidente da Universidade de Michigan State já se demitiu. Falta saber o que vai acontecer com os responsáveis do Comité Olímpico, pois custa acreditar que em duas décadas de abusos a atletas olímpicas medalhadas, todas elas credíveis e mundialmente reconhecidas pela sua capacidade de superação, não houvesse ninguém capaz de as escutar, validar e de as apoiar nas suas queixas. Felizmente as investigações judiciais estão em curso e os jornalistas também não baixaram os braços. Nos próximos tempos muita água vai correr sob as pontes e outras tempestades se antecipam.

Quanto ao tribunal, o ritmo a que correram as audições e a rapidez com que este homem foi julgado e condenado foram exemplares. Ficamos todos com a certeza de que se fez justiça e que o criminoso não voltará a molestar mais ninguém. Precisavamos de sentir o mesmo em muitos outros processos, mas frequentemente ficamos com a sensação de que, pelo menos no nosso país, os anos passam, os processos arrastam-se e as investigações perdem actualidade ou servem de muito pouco.

Em Portugal a Justiça pode ser lenta e penosa, mantendo muitas vítimas com as vidas em suspenso. Pior, massacrando as vítimas em audições sucessivas, intermináveis, muitas vezes adiadas, permitindo que fiquem durante demasiado tempo expostas aos media, onde chegam a ser tratadas de forma tão cruel como foram tratadas pelos agressores (daí muitas vítimas se absterem de se queixar!). Ou seja, em Portugal facilmente correm dois processos paralelos: no tribunal e nos media. O problema é que passa tanto tempo que as pessoas acabam irremediavelmente expostas e muitas vezes julgadas e condenadas pela opinião pública, independentemente de serem agressores ou vítimas. Cá fora tudo se confunde e extrapola de tal maneira que há vítimas que ficam na lama para sempre, enquanto os agressores resgatam a sua imagem e chegam a ser absolvidos em tribunal à custa dos amigos que têm influência nas redacções.

Estou a pensar em vários processos mediáticos que estão no imaginário de todos, mas também noutros que não são comentados fora dos círculos judiciais e só os que estão envolvidos conhecem. Processos que se arrastam durante anos e anos, que muitas vezes envolvem menores, que os dividem ao meio, os deixam para sempre rasgados e rotulados porque nunca mais se faz justiça. Nestes processos muitas crianças e jovens não chegam a perceber as fronteiras entre agressores e vítimas (sobretudo quando se trata dos próprios pais).

Julgar Nassar com rapidez e rigor era decisivo para resgatar as vidas de todas as jovens que foram abusadas por ele, mas também era vital para dar um sinal positivo à sociedade. Às vítimas, porque sofreram durante anos o que só elas sabem, e agora voltaram a sofrer com a exposição mediática e a necessidade de avivar memórias terríveis; à sociedade civil porque a justiça ou é exemplar, ou não é justiça. Valeu a pena a acção de jornalistas, investigadores, vítimas, advogados e juízes porque a conjugação de todos os seus esforços serviu para fazer justiça e para proteger potenciais futuras vítimas deste e de outros criminosos perversos. O mundo fica mais em paz sempre que há menos um pedófilo à solta.

Last but not the least, a tensão nos corredores do tribunal onde foi julgado Nassar era de tal maneira invivível para as vítimas, que houve o cuidado de trazer um cão de terapia (treinado para estar junto de crianças e jovens que foram vítimas de crimes e abusos) para amortecer o choque de terem que enfrentar o criminoso e ainda a brutalidade de terem que descrever detalhadamente o que sofreram às mãos dele. O labrador treinado não foi um detalhe simpático, note-se. Foi uma estratégia eficaz que permitiu a muitas das antigas atletas sentirem-se confortadas e protegidas pela sua presença.

Num tempo em que tanta coisa se torna viral, apetece que a coragem das ginastas seja conhecida de todos para ficarmos mais conscientes da extensão do fenómeno da pedofilia e percebermos a teia de cumplicidades que gera. É imperativo ficarmos mais atentos aos sinais que crianças e jovens dão quando se queixam de alguém que até nos pode inspirar confiança. É urgente detectar resistências a pessoas a quem facilmente entregamos os nossos filhos, mas com quem eles se recusam a ficar. Não se trata de lançar uma suspeita geral sobre o mundo dos adultos e, muito menos, de fazer com que desconfiem de quem se mostra muito amigo, mas é importante ficarmos atentos para evitarmos tragédias com danos irreparáveis.

Apetece também que o exemplo da Juíza Aquilina, incisiva e sensível ao sofrimento das vítimas ao ponto de as encorajar a não desistir, convocando para isso um cão treinado para que se sentissem protegidas, mas também para minimizar o trauma provocado por terem que fazer declarações públicas de frente para o agressor, também seja seguido como boa prática do exercício da Justiça.

Apetece, finalmente, que os jornalistas e os jornais que apostam na investigação séria de casos graves não deixem nunca de perseguir os seus objectivos de informar com verdade e liberdade. Os jornalistas do Indianapolis Star foram premiados pelo trabalho que fizeram, mas mesmo quando não há prémios, há a recompensa do dever cumprido e do resgate das vítimas.