Poucas dúvidas restam. Vivemos em sociedades do conhecimento. São muitas as evidências: universalização do acesso ao ensino, progressos nas tecnologias de comunicação e informação, expansão do ensino universitário, popularização do acesso aos livros. Outra fonte: a tutela crescente de governos e respetivos gabinetes ministeriais por académicos de carreira, associada à quantidade de especialistas universitários que foi conquistando a comunicação social. Sobra a impressão da transição de sociedades simplesmente escolarizadas para sociedades doutas.

No percurso, o conhecimento universitário foi pulverizando o velho senso comum. Este deixou de resultar de tradições populares depois absorvidas e modeladas pelas elites. O senso comum foi-se tornando cada vez mais gerado “de cima para baixo”. Teorias, ideias, teses, conceitos, pensamentos académicos, científicos ou intelectuais tornaram-se a sua matéria-prima por excelência. Bastam as inescapáveis companhias da rádio, televisão, jornais, cinema, música. Serge Moscovici explicou-nos.

Não significa que nas sociedades do conhecimento os hábitos quotidianos tenham passado a reproduzir as lógicas dos saberes académicos nos seus traços complexos ou sofisticados. Significa apenas, e já é muito, que o senso comum passou a selecionar, simplificar, reelaborar ou produzir caricaturas a partir de uma fonte hegemónica: a universidade. Por vias diretas ou indiretas, mesmo no mais íntimo da vida familiar ou a simples intenção de ouvir comentários a um jogo de futebol, o sentido do quotidiano tornou-se quase em permanência supervisionado por sociólogos, psicanalistas, economistas, psicólogos, médicos, historiadores, politólogos, nutricionistas, pedagogos, ambientalistas, juristas, filósofos, engenheiros, linguistas. Entre outros.

Remetido para a irrelevância ou clandestinidade, o saber de fora da universidade vai soçobrando, incluindo o que dele resta de bom senso, prudência, ponderação. Nem a fé religiosa escapa. Necessita de descodificadores: sociólogos, psicólogos… A ciência é a nossa crença. A universidade o local de culto. Se o saber universitário passou a ser o nosso farol-guia (ainda bem), o seu sentido de responsabilidade social tornou-se inquestionável (muitíssimo mal). Foi o que transformou a nossa crença em fanatismo. E a vida seguia mais ou menos confiante.

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Até que a crise – rápida, impiedosa, profunda – deixou quase tudo revolto. Quase tudo forçado a reinventar-se. Quase nada escapa ao olhar inquisitorial de sociedades que procuram responsáveis. Uma das raras exceções ao olhar inquisitorial tem sido o topo da pirâmide: a universidade. Os sintomas de alienação coletiva começaram a revelar-se.

Mergulhadas na crise, as sociedades do conhecimento não evidenciam consciência do quanto vivem desarmadas face aos perigos do conhecimento académico, tanto quanto as sociedades europeias do século XIX e inícios do XX. As últimas, no entanto, despertaram na hecatombe da Grande Guerra (1914-1918). Entenderam no que se tinham metido e por que razões teriam muita dificuldade em sair. Angustiadas, foram adivinhando a inevitabilidade de uma segunda hecatombe bem pior para limparem as heranças más da sofisticação científica e técnica, do aprumo filosófico, da arregimentação das vidas a partir de teorias de intelectuais.

Bem pior estamos hoje. Embatemos violentamente com a cabeça na parede, ainda assim mantemos inabalável a confiança na mão que nos empurrou. Nunca a metáfora da “mão invisível” de Adam Smith fez tanto sentido. O fantasma do “neoliberalismo”, libertado de um castelo imaginado, em nada ajuda. Mas a crise não tem culpa. Cumpre o seu papel. Tudo faz para que vejamos de onde sopram os ventos: das relações entre as sociedades e o tipo conhecimento que as guia. Aí está o olho do furacão. Todavia, as divindades protetoras das universidades – Tempestade e Alienação – turvam-nos a lucidez.

Os académicos também, transfigurados em ilusionistas. Uma parte remete-se ao silêncio. Fecha-se nas universidades, escondida de si mesma. Outra faz-se ouvir e ver todos os dias. Sempre preocupada em orientar a gente comum na descoberta de causas e causadores da crise. Por eles fica claro como água que os maus da fita são os banqueiros, os políticos ou, numa perspetiva mais cirúrgica, a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Nem vale a pena discutir. Apenas anotar que tal arte agudiza os enigmas do enredo porque os lugares-chave da alta-finança e da economia ou os lugares-chave de decisão política há muito que ficaram reservados para os que representam o que de melhor as universidades têm produzido.

O surreal segue imparável. Parte dos académicos destaca-se entre o que mais carregam, em força, contra o poder político. Sentem-se moralmente ultra-autorizados. A urgência é tal que nem tiveram tempo de colocar a mera hipótese académica de os fundamentos do seu saber e as suas atitudes e comportamentos na relação com as sociedades serem os mesmos dos seus pares que há décadas tomaram conta do coração do sistema. Parece tão-só importar-lhes desapear os seus pares do poder. É a sua vez.

Nestes tempos de esquizofrenia, torna-se quase impossível perceber que a crise é, acima de tudo, uma crise de produção, validação, regulação e legitimação dos tipos de conhecimentos que guiam as sociedades. Assim é desde a pré-história. O século XXI acrescenta uma novidade: nas sociedades do conhecimento, os académicos arriscam-se a ser os últimos a dar conta da evidência. Se assim não fosse, há muito que teriam exigido a si mesmos, e às suas universidades, uma profunda reflexão epistemológica que provocasse agitação intelectual dentro das suas instituições. Estas acompanhariam a crise, discutindo entre si o papel do conhecimento e dos académicos em sociedades reinventadas pela crise. Mas para isso as águas não se agitam. Tem sido bem preferível agitar a casa alheia, a praça pública. Não há nojo em invadi-la.

De tão inebriados que vivem consigo mesmos, os académicos disfarçam não dar conta que, por responsabilidades próprias, a sua casa-mãe, a universidade, dá sinais de descrédito social como nunca. Não reverter tal tendência levar-nos-á a todos a redescobrir poços mais fundos nesta ou em futuras crises. Assemelha-se até irrefutável que a popularidade dos académicos depende cada vez mais de se insinuarem próximos (ou críticos) da “direita” ou da “esquerda”, do partido A ou B, e cada vez menos das suas competências científicas ou das universidades de onde provêm.

O filme está para durar porque o trunfo continua na posse dos doutos ilusionistas. Por ingenuidade ou indiferença, a gente comum resiste em perceber que, se as universidades são responsáveis por parte essencial do que é favorável nas suas vidas quotidianas, não são menos responsáveis por parte essencial do que é desfavorável. Pensa-se e age-se como se as universidades não tivessem nada a ver com os maus resultados nas finanças públicas, a má qualidade da legislação e da justiça, a indisciplina e a má qualidade do ensino, a burocracia na gestão da administração pública, o inebriamento pelo betão, a falência de empresas públicas e privadas, os abusos fiscais e por aí adiante. Certas áreas da sociologia e afins nem sequer estão imunes à hipótese de serem indutoras de violência social, assemelhando-se a gangsters científicos.

Em tudo isto não há memória de responsáveis científicos das universidades, enquanto órgãos institucionais, ou do Conselho de Reitores se demarcarem ou mesmo denunciarem o que não tinha suportes fiáveis do ponto de vista académico, científico ou empírico, o que poderia ter a prazo efeitos inversos a meras boas intenções – considerando o muito que passa das universidades para a vida quotidiana. Tal silêncio institucional mereceria integrar o cardápio da habitual turba indignada que, não raro, esses mesmos académicos lideram. Simples opiniões, simples opções ideológicas, decisões apressadas ou mal estudadas vão passando com o carimbo de “estudos académicos”, “investigações universitárias” ou “pareceres de especialistas”. Neste contexto, até agora nenhum diploma, curso ou centro de investigação foi colocado em causa pelos pares. É sempre de fora que soa a campainha da consciência social e cívica do erro.

Para ser claro, se existem instituições que merecem todos os cortes financeiros e mais alguns por parte do estado são as universidades. Porém, paga sempre o mais pobre, o ensino básico e secundário. O último foi desregulado, ao longo de décadas, por teorias de “cientistas” universitários. Nos intermináveis processos reformistas, as universidades nunca falharam no suporte institucional às mais abstrusas engenharias sociais impostas a docentes e alunos do ensino não-superior, o que tem sempre impacto fortíssimo em sociedades de escolarização massificada. Outros que recolham os cacos.

Na substância, militares e académicos não deveriam ser diferentes naquilo que os liga às sociedades. O facto é que os nossos académicos se comportam vezes demais como os militares da Guiné-Bissau. Demasiadas vezes fora do seu espaço, excessos de intervenção sem contenção, falta de ponderação, incapacidade de assumirem e refletirem sobre erros próprios.

Não se contesta que um psicanalista, médico ou jurista intervenha no espaço público para falar de psicanálise, medicina ou leis. Bem pelo contrário. Mas é difícil aceitar que se instrumentalize o conhecimento académico a pretexto de tudo e mais alguma coisa, tanto pior para fazer política. Com isso nada se acrescenta à política, mas diminui-se muito à dignidade da instituição universitária.

Moral da história: a má gestão das sociedades do conhecimento reside na falta de autonomia entre o domínio académico (ou da razão) e o domínio político (ou do poder). Estamos confrontados a ter de retomar no século XXI, ainda que em moldes diferentes, um tipo de desafio dirimido pelos iluministas no século XVIII, na altura resultante da falta de autonomia entre o domínio do conhecimento (razão) e o domínio religioso (fé). Eles resolveram o problema do tempo deles. E nós, três séculos depois?

Feitas as contas à crise, as universidades representam hoje um dos mais bem-sucedidos instrumentos de captura do estado e, bem pior, do Conhecimento pelos partidos políticos.

No pasa nada!