Quem já descongelou algo no micro-ondas, já passou certamente pela experiência em que o exterior fica cozido, mas o interior ainda está congelado. É uma boa metáfora para que se perceba o que se passa nas carreiras académicas e de investigação.

Quando em 2017 se começou a falar do descongelamento das progressões da carreira, o SNESup cedo alertou o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior para a necessidade de se ter em conta a situação da carreira de investigação científica. Trata-se de uma carreira que não é revista desde 1999, o que testemunha também o desinvestimento a que tem sido sujeita.

Dado que ainda não foi revista, a progressão na carreira de investigação científica mantém-se ligada a um critério temporal, perdendo por isso o regime equiparado às carreiras académicas (de docência universitária e no politécnico).

Ora, o congelamento na revisão da carreira de investigação permite perceber muito bem dois fenómenos, que demonstram a desvalorização da qualificação avançada.

Comecemos pelo problema da progressão nas carreiras académicas, onde temos hoje um sistema do mais elevado escrutínio (cada docente tem de apresentar comprovativos de tudo o que produz, desde os artigos científicos às patentes, passando pelos projetos europeus, até às cargas horárias), mas cujos resultados demonstram um sistema francamente desequilibrado (apenas progrediram menos de um terço dos docentes de carreira, sendo que, por exemplo, na Universidade do Porto progrediram apenas 6%, face a mais de 40% no Politécnico do Porto).

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A razão destes desequilíbrios assinala problemas que tinham de ser resolvidos na revisão da carreira de investigação científica, nomeadamente, a interpretação do Governo de que apenas poderiam progredir os docentes avaliados com 6 anos de menção máxima.

Note-se, no geral da Administração Pública, as carreiras foram revistas de um quadro no qual a progressão se dava a cada três anos, para outro em que a progressão é mais lenta e dependente da avaliação de desempenho, podendo ir de 4 anos (para os avaliados com Excelente) a 10 anos (para os avaliados com Bom).

Portanto, ao rever-se a carreira de investigação, haveria aqui uma penalização, mesmo que se a adequássemos apenas ao sistema de pontos do geral da Administração Pública.

É fácil perceber o quão mais penalizador é a restrição que existe nas carreiras académicas, numa interpretação em que a progressão apenas se dá com 6 anos de menção máxima.

Ora, a trama adensa-se, porque a lei e os regulamentos preveem ainda a progressão nas carreiras académicas com 10 pontos, mediante um despacho conjunto dos ministérios das Finanças e do Ensino Superior que fixa o montante disponível. Isso significa termos simultaneamente pessoas a progredirem com seis anos de menção máxima (o equivalente a 18 pontos) e outras com 10 pontos, sendo que ficariam ainda outras, que apesar de terem os pontos necessários, não progridem porque o montante fixado pode não chegar a todas.

Sim, é kafkiano, quer na burocracia, quer nos resultados, não esquecendo a parte em que reitores e presidentes guardaram para si uma avaliação automática de excelente e um número de cargos que relevam significativamente para efeitos de avaliação.

Estes professores são uma parte dos queimados e congelados. A outra são aqueles a quem nunca é permitido aceder à carreira, ou seja, mais de 4.000 doutorados, que vão de bolsa em bolsa, rodando de programa em programa (ora Ciência, ora Investigador FCT), numa decisão política que resolveu extinguir a carreira de investigação (por falta de uso), apostando numa lógica de trabalho precário.

Dirá o leitor: não há dinheiro. Ora, além das várias prioridades que se têm discutido sobre o financiamento ao sistema bancário, convém recordar que este é o sistema em que docentes e investigadores são responsáveis por captar mais de 600 milhões de euros em projetos (o objetivo é chegar ao dobro). Para que se tenha uma ideia, o custo com as progressões ronda os 7 milhões.

Muitos dos que captam este financiamento estão congelados, ou continuam a ser queimados.

É também por isso, que quem tem qualidade mantém todas as reservas sobre o rumo da política de Ciência em Portugal. É que o clientelismo e nepotismo são apenas parte de um sistema mal desenhado.

A revisão da carreira de investigação científica era uma oportunidade de nos dirigirmos a estes problemas, demonstrando um rumo e uma política. Segundo as notícias mais recentes, passou a ser mais outra oportunidade perdida. A questão é, quanto mais tempo é que Portugal continuará a ser este país de oportunidades desperdiçadas, por ser incapaz de desenhar um sistema minimamente justo e equilibrado?

Presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior