No espaço de um mês, a geringonça foi celebrada duas vezes. Primeiro, no XX Congresso do PS. Agora, na X Convenção do BE. De certo modo, estes foram eventos gémeos: em ambos, vincou-se a viragem à esquerda, criticou-se o rumo do projecto europeu, diabolizou-se o anterior governo PSD-CDS e assinalaram-se as medidas mais populares (populistas?) da geringonça. A maioria das intervenções que se ouviram nesses dois eventos poderia ter sido proferida tanto num como noutro. Algo que, em 2014, seria inimaginável – nessa altura, o BE escarnecia o PS enquanto partido de direita. Quem mudou? Os socialistas – como explicou Mariana Mortágua, foi o PS que se aproximou do BE e não o contrário. Foi, aliás, essa vitória que os bloquistas passaram o fim-de-semana a exibir: o PS governa, mas quem manda é o BE. Seja directamente, condicionando as decisões executivas por via dos equilíbrios na maioria parlamentar. Seja indirectamente, fixando as linhas estratégicas e ideológicas para os grandes temas, nomeadamente quanto ao projecto europeu. Ou seja, Catarina não foi apenas entronizada como líder única do BE, mas também como comandante suprema da geringonça. A sua mensagem política foi claríssima: quem quiser que o PS governe à esquerda terá de votar no BE.

Este pragmatismo do BE tem méritos eleitorais, mas sofre de uma incoerência gritante quando iluminado pelo poder: a ausência de um pensamento estruturado sobre o projecto europeu. O BE quer abandonar a UE? Catarina Martins garante que não, o que quer é uma UE liberta do neoliberalismo e das políticas de austeridade. Mas como é isso compatível com a convicção de que a UE é um projecto falhado, como Louçã qualificou, ou com a afirmação de que esta UE não tem solução possível, como Pureza sentenciou? Não dá para querer reformar a UE e, ao mesmo tempo, decretar a morte do projecto europeu e apontar “uma linha mais soberanista” como caminho.

Esta incoerência não é uma originalidade do BE. O Syriza viveu-a quando venceu as eleições legislativas na Grécia e, depois de uma cisão interna, optou por cumprir com as regras europeias. Ora, o BE quer crescer e reforçar a sua influência na governação do país, pelo que a questão impõe-se: numa situação semelhante em termos de composição do governo – imagine-se, por exemplo, uma coligação PS-BE – seguiria Catarina Martins o mesmo caminho de Tsipras, aceitando as regras do Tratado Orçamental? Ficou triplamente claro que não. No discurso de encerramento de Catarina Martins, que arrasou as lideranças e regras europeias. No apupar que os militantes bloquistas dedicaram ao Syriza. E na entrevista de Mariana Mortágua, que explica o afastamento institucional do BE face ao Syriza – a cedência de Tsipras às regras europeias é imperdoável. Traduzindo: a identidade do projecto do BE requer um confronto com a actual UE, a sua liderança e as suas regras – daí a ameaça de pedir um referendo caso Bruxelas imponha sanções sobre Portugal.

Num partido que agora assume um projecto de poder e se reconhece como partido de (influência do) governo, esta posição sobre a Europa é insustentável. Porquê? Porque conduz a um vazio fundamental, aquele a que Catarina Martins não soube (ou não quis) responder: afinal, para além dos slogans soberanistas, onde está a alternativa do BE às regras europeias? Não se sabe. Em tempos, alguns dos seus ideólogos apontariam à Albânia. E o BE, mesmo que agora se diga mais pragmático e menos idealista, continua sem apresentar uma resposta melhor.

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