Barrigas de aluguer, eis a designação comum e universal que não esconde absolutamente nada nas entrelinhas, ao contrário do que acontece agora, com o texto da Lei sobre Gestação de Substituição, em vigor desde o início do mês. Barrigas que se alugam, são barrigas que têm custos e se pagam caras. Ponto.
Esta lei proíbe o negócio, mas não diz como são os mecanismos de fiscalização e penalização. Além disso há custos tão ou mais elevados que os financeiros. O preço físico, moral e emocional a pagar por todo este processo pode ser brutal. Desde logo para a gestante de substituição e para o bebé, mas não só. Digam o que disserem, a lei não é tão estrita como querem fazer crer. Se fosse, tenho a certeza de que Jerónimo de Sousa e os seus camaradas a teriam aprovado. Mas não aprovaram.
No Verão passado Marcelo vetou a lei com o argumento de que era pouco clara no que diz respeito aos superiores interesses do bebé. Um ano depois a lei aprovada continua a não proteger o bebé nem garante os seus superiores interesses e, por isso, é claramente ‘um pé na porta’. Uma porta que já ninguém vai conseguir fechar, apenas abrir cada vez mais.
Todos temos consciência de que um portão grande e pesado não se abre à primeira, mas também todos sabemos que a partir do momento em que o pé fica bem seguro no portal, ele já não volta a fechar. A técnica é infalível para larápios, aliás. Mais cedo ou mais tarde, esta porta das barrigas de aluguer estará escancarada no nosso país e, então, todos os caminhos ficarão livres para as opções que agora não foram contempladas e supostamente estão bem acauteladas.
Que ilusão pensar que esta lei ficará por aqui. A mentira tem perna curta, a omissão é sempre coxa e, fatalmente, faz tropeçar mais à frente. Para já, quem legislou e quem aprovou fala com candura (e uma grande lata) sobre uma lei de excepção que proíbe quase tudo, desde o negócio à possibilidade da chamada ‘opção de vida’ (vide Cristiano Ronaldo), deixando também de fora os casais homossexuais. Se lermos com atenção, vemos que não é assim tão estrita pois muita coisa fica já prevista nas entrelinhas:
“O recurso à gestação de substituição só é possível a título excepcional e com natureza gratuita, nos casos de ausência de útero e de lesão ou doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem”.
Como é óbvio esta última frase não é inocente. Muito pelo contrário. Estrategicamente colocada, deita por terra todo o argumentário dos legisladores, quando nos tentam convencer que a lei é para casos ultra-excepcionais. Não é. A prova é esta mesma abertura a “situações clínicas que o justifiquem”. De que situações clínicas estamos a falar? Ditadas por que circunstâncias? E prescritas por que tipo de médicos? Nesta derradeira frase cabe tudo e mais alguma coisa, como facilmente se percebe. Aliás por ter tropeçado nesta frase, o PCP votou contra a lei.
Mas não é apenas esta frase que nos deixa inquietos. A omissão quanto a quem vai fiscalizar o processo do início ao fim também levanta muitas dúvidas. Como vai ser feito o acompanhamento de todas as partes? E quem pode garantir que não há contrapartidas? Se houver e forem detectadas, a gestante e o bebé vão parar à cadeia? E passam lá o tempo de gravidez? E, no termo, a criança nasce e sai da prisão? E os pais biológicos da criança, também são presos? Se sim, o que acontece ao bebé? Isto, claro, no pressuposto de que há castigos e penas a cumprir para quem infringe a lei.
Nesta lei choca tudo, desde a possibilidade de mercantilizar o corpo das mulheres e industrializar a vida dos bebés, até à irrelevância absoluta e relativa da própria legislação face a mil e um problemas que, esses sim, requerem uma dedicação urgente. Falo de mais e melhores leis inclusivas e protectoras para pessoas portadoras de deficiência, mas também falo de leis mais flexíveis e facilitadoras de processos mais ágeis para a adopção, para dar apenas dois exemplos gritantes e fracturantes.
Nesta lei muitas perguntas ficam sem resposta e ao ouvir os responsáveis pela sua elaboração e aprovação, os mais incautos até poderiam ficar com a ideia de que se trata de uma coisa imperativa e muito séria, extraordinariamente ética e restritiva, que apenas prevê situações extremas que convocam à bondade e solidariedade das mulheres pelas mulheres, abrindo a possibilidade de, na mesma família, uma mulher ou rapariga oferecer amorosamente a sua barriga durante nove meses para ajudar uma tia ou uma prima a realizarem o seu sonho de maternidade. Mas alguém acredita que assim seja? Eu não.
Vejamos algumas questões práticas que atravessam as mulheres de todo o mundo: salvo as que confessam que adoram estar grávidas do primeiro ao último mês (à espera dos seus próprios filhos, muito desejados, note-se), a esmagadora maioria sente que nove meses de gestação é um tempo demorado que pode revelar-se bastante pesado. Quando tudo corre bem, os chamados ‘meses do meio’ até são um tempo fácil e feliz, mas os primeiros 3 podem ser meses de suportar enjoos, e os últimos 3 um tempo de cúmulos de cansaços, com as pernas cada vez mais inchadas, numa exaustão crescente que a partir de certa altura as pode impedir de trabalhar e, nas últimas semanas, certamente interfere com o sono por já não terem posição confortável para dormir.
Mesmo as mulheres que já foram mães e passaram ‘de maravilha’ toda a(s) gravidez(es), sabem que o tempo ante e pós parto não é um mar de rosas, muito pelo contrário. A acrescentar a todos os incómodos ao longo da gravidez, no termo ainda há as lendárias contracções que doem e muito (a epidural não é dada mal começam as contracções) além de que o trabalho de parto, em si mesmo, pode estender-se durante uma eternidade e muita coisa pode correr francamente mal. Qualquer mulher que tem o desejo de ser mãe suporta tudo isto por amor, mas custa acreditar que alguém suporte o mesmo sem contrapartidas absolutamente nenhumas.
Todas as mães do mundo sabem que os meses de gravidez são um tempo cheio de exigências, cuidados e restrições. Por isso mesmo, algumas dessas mesmas exigências constam nos contratos a celebrar, nomeadamente a alimentação e os hábitos de vida de quem aluga a sua barriga, bem como as suas opções pessoais e profissionais, para já não falar da sua intimidade e do relacionamento sexual, que ficam sujeitos a condicionantes expressas. Também por isto custa acreditar que haja mulheres que aceitam tudo sem qualquer contrapartida. Só porque sim, e porque outras não podem gerar os seus próprios filhos.
Neste capítulo abro alguns parêntesis concretos, com interrogações práticas: onde estão e quem são as mulheres que cedem gratuitamente o seu corpo e prescindem das suas rotinas, que são capazes de sentir um bebé crescer dentro de si ao longo de nove meses, relacionar-se com ele, senti-lo mexer-se, ouvir os seus batimentos cardíacos e ver as ecografias, interagir com ele e estabelecer vínculos, para depois o entregar como mercadoria?
Quem são e onde estão estas mulheres que sabem que o bebé ouve a sua voz e acompanha os seus movimentos, absorve as suas emoções e grava memórias como que ancestrais, para depois o despejarem como se esvazia um saco de compras na volta do supermercado? Insisto, quem são e onde estão estas mulheres que fazem tudo isto a troco de nada?
Toda a vida de uma grávida fica condicionada ao longo de nove meses, fora os que se seguem, em que o cansaço impera e muitas mulheres lutam contra a flacidez instalada. Todas as puérperas sem excepção precisam de descansar para recuperar a forma e eventualmente perder peso, mas tão importante como tudo isto, é o clássico ‘baby blues’ que desaba sobre muitas mulheres que acabaram de dar à luz. Hormonalmente falando, a gravidez é uma montanha russa e embora nem todas as mães recentes sintam esta ‘depressão pós parto’, muitas experimentam uma certa tristeza, desânimo ou nostalgia. E, volto a insistir, tudo isto a troco de nada? Custa acreditar.
Voltando à lei propriamente dita, o PCP votou contra por razões que também me assistem e estou cem por cento de acordo com Jerónimo de Sousa e os seus camaradas. Os superiores interesses da criança não estão assegurados e em lado nenhum se percebe o que acontece se a mulher gestante desistir de entregar o bebé no fim da gravidez. Por outro lado, se os dadores de gâmetas também se separarem ou desistirem de ter aquele filho, onde vai parar o bebé? E se houver malformações congénitas, quem decide o que se segue? E se os beneficiários rejeitarem o bebé por alguma razão? Mais, estará salvaguardado o direito de a criança poder vir a conhecer a mãe que o gerou, apesar de não ser a sua mãe biológica? E que impacto tem tudo isto no desenvolvimento emocional de um ser humano?
“O texto aprovado não assegura resposta adequada” considerou o PCP. Sobretudo quando “já há um novo ser que nasceu e tem direito a ser desejado e amado”. Também acho. E acho mais: eu, que sou mulher e mãe, sentiria tanta repugnância em gerar um filho que não fosse meu como em desembaraçar-me dele no fim. Tudo é anti-natural. Tudo é artificial e, desculpem lá, tudo cheira a negócio.