1. Costa vai ganhar as primárias a Seguro. Não interessa tanto se um tem “carisma” e outro não, um mais experiência e o outro menos, maior ou menor currículo, se isto ou aquilo. Interessa sim, que sendo quase da mesma idade, não pertencem à mesma geração política. Essa circunstância, que em tudo os distingue, fez de Costa, desde o início, “o” vencedor, e de Seguro, “o” outsider. Costa tem a mesma cultura da geração que no PS fez a revolução e cresceu e interveio politicamente com ela. O eixo político é-lhes comum. No PS envelhecido de hoje, a maioria dos militantes socialistas e dos “simpatizantes” provém dessa cultura, continuando a praticá-la sem sobressalto nem dúvida. Militantes e simpatizantes responderão à chamada do voto no próximo domingo com o gosto – e a ilusão, claro está – do “reconhecimento”: reconhecem-se e revêem-se no presidente da Câmara. António Costa, é “deles” e “um deles”. António José Seguro, indefeso e atrapalhado, parece um retrato ao contrário: a sua circunstância não coincide com a realidade que vigora no Largo do Rato, a de Costa encaixa nela às mil maravilhas. António Costa trará o mundo perfeito, embora seja o de ontem. Seguro que não é de mundo nenhum, destoaria horrivelmente. Nunca poderiam permitir-lhe a vitória.

2. Isto dito, e independentemente do currículo, nome, cultura política, habilidade, experiência, carisma, inegáveis, todos – parece ver-se ali, em António Costa, o fio de uma qualquer fragilidade. Não gosto da palavra, duvido que seja a melhor, peço desculpa se não for, mas não acho outra.  Quero eu dizer com ela que o António Costa dos ambientes civilizados e serenos, onde não o confrontam nem defrontam, esse Costa de que se gosta e com quem se cria imediata empatia, informado, inteligente, divertido, leve, rápido, astuto, incisivo, brilhante por vezes, sedutor sempre, esse Costa, dizia eu, não parece ser o mesmo quando está debaixo de fogo. Nem comportar-se de igual modo quando sob pressão.

Não me refiro especialmente a nada, mas estou a pensar em tudo. E não tenho a certeza de que não haja nele reações muito distintas e posturas muito diversas num e noutro caso: quando joga em casa, sem sombras nem ameaças, a sua afirmação pessoal é quase gloriosa; quando dribla fora de casa, em terreno de confronto, há súbitas inibições e enrolados esmorecimentos. Dir-se-á que ninguém é igual em tão diferentes ocorrências. Não é. Mas não chega dizer isso face à suposição que António Costa pode não ser exactamente o mesmo político sentado na Câmara, numa reunião liderada por si, ou face a um desafiante adversário, seja ele qual for.

Sucede ainda que o Costa que encontramos numa sala de amigos e com quem gostamos de conversar, o Costa da Quadratura que encantou plateias, que brilhou num debate parlamentar onde apenas a agenda do dia estava em causa, o Costa ministro feliz de governos folgados, o Costa autarca, onde a sua vontade pontificava mesmo quando teve de fazer compromissos – e fê-los! – “esse” Costa enfim, não vai poder ser só “esse” quando ganhar o PS. É preciso mais do que nos últimos trinta anos. Uma pele mais dura. Diante de António Costa não está apenas a mera continuação da estrada percorrida mas um caminho de pedras. É verdade que é um político capaz de impiedade, que tem garra e já deu provas. Mas agora o sedutor desejado vai saltar para oficiante eleito. O salto interdita-lhe qualquer tropeção no fio de qualquer fragilidade.

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Um oficiante à mercê de tudo: adversários bem mais duros de roer que Seguro, um partido quase dividido ao meio, vinte e quatro horas sob os holofotes, uma vida escrutinada ao milímetro, uma media fatalmente menos amável. Para não falar do que verdadeiramente conta nisto tudo: o achamento de bons argumentos, boas ideias, boas escolhas, boas decisões. Norte e destino.

3. Há coisas que em certos momentos se devem dizer : gosto imenso de António Costa. Gostei sempre.

É de longe o político socialista com quem mais tenho conversado ao longo da vida e de longe aquele que mais vezes entrevistei, sobre quem mais escrevi, com quem mais discuti, debati e me engalfinhei.

É tão bom conversador que o convidei um dia para debater na televisão uma peça de teatro que ia no Teatro Aberto (“Democracia”, de Michael Frayn) por me parecer que tê-lo ali traria vantagens ao programa, como trouxe. Foi meu convidado durante meses num programa radiofónico, proporcionando chispa e brilho aos debates com Paulo Rangel e com a minha irmã Maria José, moderados por mim. Quando teve de deixar o programa para rumar para a Quadratura só me faltou chorar, apanhada de surpresa em Maputo, por um telefonema seu. Não lhe devo favores, devo-lhe mil delicadezas. E (também com o meu voto) uma Lisboa revigorada, o que não é de somenos

Há entre nós, julgo eu, uma amizade afectuosa, sólida, antiga, como as amizades que valem a pena.

Boas conversas à mesa de muitos restaurantes, trocas de ideias e estados de alma, o mesmo riso, um fervor benfiquista – já fomos os dois ao Estádio da Luz – um sentido de humor parecido, alguma cumplicidade, muitos “sms” apressados. Muito caminho andado.

Nunca teve importância que caminhássemos em tabuleiros políticos opostos. Gostaria que continuasse assim mesmo.

Há coisas que em certos momentos se devem dizer.

4. Tenho-me farto de olhar para trás a ver se me lembro se em anteriores eleições partidárias era assim, ou parecido: se havia acrimónia e intriga, se lavrava a desconfiança e se grassavam as más maneiras, se havia um risco a dividir as hostes, metade para um lado, metade para outro. Sim, havia muito parecido. Os tempos é que são diferentes, piores claro está, e os faróis da media, acesos como nunca até aqui, fazem o resto: aumentam o mau e deixam a nu o pouco bom que há. É verdade que também costumamos ser sempre mais impiedosos com aquilo que vivemos ao vivo e in loco do que com o já vivido. Aquele fatal “dantes é que era bom” cobre de açúcar passados que talvez não levassem açúcar. Quando olho para trás, mitifico Soares e Zenha, tenho tendência a rever em glória os confrontos entre Sampaio ou Guterres e sou capaz de, sem corar, achar “formidáveis” os congressos do PSD onde a intriga fervia e os processos não se recomendavam.

Seja como for, tudo o que ouço hoje aos cavaleiros que galopam no PS me parece politicamente desinteressante, descalibrado em relação ao país, dissonante com o que a nossa realidade pressupõe e exige. E mesmo que eles a enxotem como uma mosca mole no outono – como aliás enxotam – a realidade, hélas, será sempre a que é.

Talvez porque muito simplesmente estou sempre disponível para a política julguei ingenuamente (suspeito que estupidamente) que sim, teríamos política. Que estes dois cavalheiros socialistas nos iriam servi-la, em nome da tal alternativa. Em vez disso, estivemos sentados numa imensa plateia olhando um espectáculo que, na melhor das hipóteses, nos maçou de morte e, na pior, nos envergonhou um bocadinho, de tão desfasado do mundo e das coisas. E sabe Deus como não uso troçar dos políticos, menorizando-os gratuitamente ou acusando-os cegamente do exclusivo dos males do país. Pelo contrário. E também sabe Deus que por instinto, intuição, vontade, ou seja lá o que for, me mantenho fiel a este nosso puzzle partidário, desconfiando dos Marinhos e Pintos deste mundo – e com que razão, caramba – e fugindo deles a mil pés. Lembro-me aliás de como discordei dos meus amigos Henrique Monteiro e David Dinis no écran da TVI 24, na noite das eleições europeias a propósito dos seus empenhados alertas sobre os “novos” os “independentes”… Esse pouco recomendável cortejo de gente que de sopetão começava a emergir na cena política, vestindo a pele dos impolutos inocentes contra a praga dos políticos “conhecidos”. (Se é óbvio que é mais que tempo de mudar alguma coisa e rever muita, é mais óbvio ainda que não é com nouveau venus, Deus nos livre deles)

Voltando ao PS, foram semanas de desperdício político. De um lado, alguém por vezes cristalizado numa esquerda inquietantemente datada; do outro nada, ou quase nada. O pior é que o PS já foi muito melhor que isso e ainda pior: como irão fazer para voltar a sê-lo? A ponto de se responsabilizarem pela mudança que -dizem eles – o país implora como pão para a boca? E que só eles – também dizem – estão em “circunstâncias” de assegurar?