Estrangeiro é um conceito muito largo. Um sujeito que pode ser mil sujeitos. Eu não fui a mesma estrangeira na França que sou em Portugal. Assim como sei que um angolano, um francês ou um chinês em Portugal não se sentem da mesma forma que eu me sinto. Cada história é uma história, cada vivência é uma vivência.

Mas, certos sentimentos, eu acredito que sejam comuns. Há angústias pelas quais todos passamos, há medos compartilhados, prazeres que todos experimentamos, dúvidas que nos acompanham sempre, como as malas de rodinha e as saudades permanentes.

Todos vivemos uma certa fragilidade de raízes. Para nossos conterrâneos somos os que foram embora e para os que nos recebem seremos sempre os de fora. É como se não pertencêssemos verdadeiramente a nenhum dos dois lugares: somos estrangeiros onde vivemos e, num dado momento, também somos estrangeiros no país onde nascemos. E o sentimento que isso traz não é algo simples de se lidar.

Ser estrangeiro é ter sempre uma estranha sensação de que estão nos fazendo um favor de nos deixarem permanecer na nossa própria casa. Trabalhamos, pagamos as contas, temos documentos, amores, projetos, mas mesmo assim não parecemos ser tão donos das nossas vidas. Nunca sabemos se aparecerá um Trump ou um outro absurdo qualquer.

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Por outro lado, temos a contraditória riqueza de sentir que vivemos duas vidas ao mesmo tempo, enquanto os demais vivem apenas uma. A sensação é boa e é ruim. Uma vida mais preenchida, dois países, duas bases, dois ninhos. Ao mesmo tempo, duas ausências, duas saudades, dois vazios.

É difícil ser estrangeiro. As dúvidas sempre pairarão a seu respeito, não importa o quão fiável você seja. Se você tiver nascido no hemisfério sul, as dúvidas duplicam. Assim como suponho que não seja fácil ser português na França, nem romeno na Alemanha. Estrangeiros são eternas hipóteses. Por que está aqui? O que quer aqui? O que ele veio buscar aqui?

Contudo, há dias em que o país que nos acolhe é puro abraço e nossas certezas dão o ar da graça. Há dias em que querem saber da nossa história, elogiam nosso sotaque e nossa coragem, fazem com que a gente sinta-se bem vindo. E talvez seja isso que mais importa: sentir-se bem vindo. Com o resto a gente vai lidando.

Ser estrangeiro é viver na corda bamba dos sentimentos, na saga eterna dos documentos, na incerteza dos olhares e nas graças dos braços abertos que compensam todo o resto.

E, no fundo, é boa a sensação de apresentar a música do Zambujo para os amigos de lá e a do Liniker para os amigos daqui. É bom levar azeitona boa para lá e trazer palmito de açaí para cá. Ensinar minhas amigas brasileiras a falarem “pirosa” e as amigas portuguesas a falarem “piriguete”. É bom presentear meu sogro com um livro do Gregorio Duvivier e meu pai com um do Ricardo Araújo Pereira. É sorte beber a melhor cachaça e o melhor vinho. É bom carregar a alegria do samba e a emoção do fado no mesmo peito.

Ser estrangeiro dói, por mais confortável que a situação possa ser. Não, não é fácil. Mas vale a pena. Como dizia um simpático senhor português que mora nas minhas prateleiras, desde que a alma não seja pequena. Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor. Aos poucos vamos aprendendo.

PS: a autora, por ser brasileira, não escreve no português de Portugal, mas procura ter cuidado para evitar expressões que dificultem o entendimento dos portugueses. De toda forma, caso haja qualquer dúvida ou sugestão, ela está sempre à disposição dos leitores através do contato ruth.manus@estadao.com