Se encarei com relativa compreensão a notícia de que os crucifixos seriam retirados das paredes das escolas públicas francesas, já me causou algum espanto e transtorno a decisão de um tribunal administrativo francês de remover do espaço público uma estátua de João Paulo II por esta ter uma cruz “demasiadamente ostensiva”. Meses antes, também uma imagem de Nossa Senhora havia sido removida de um parque público na região da Sabóia sob o mesmo pretexto: a laicidade do Estado.

Este assunto deve preocupar-nos a todos, não tanto pelos danos que já causou, mas sobretudo pela ameaça que um incorrecta compreensão do conceito de laicidade representa para o futuro da Europa, sobretudo num período de indiscutível crise identitária e de tão grande tensão com o islamismo.

Ponto prévio: é bom que o Estado seja laico e que inexista qualquer confusão entre as suas atribuições e as da Igreja. É bom que o Estado não professe uma determinada religião e não procure impor, através dos meios custeados por todos os contribuintes, uma determinada visão (de resto, como sucede – ou deveria suceder – em matérias políticas e ideológicas). A neutralidade confessional do Estado é importante não só para respeitar, como também para promover a liberdade religiosa de todos os cidadãos.

Há, contudo, dois equívocos que têm minado este debate e que mais não são do que manifestações (direi mesmo “complexos”) de quem, querendo ser tão laico, ameaça desvirtuar por completo o conceito de laicidade.

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1. Laicidade não significa imposição de indiferentismo religioso. Um Estado que suprime ou proíbe do espaço público qualquer expressão religiosa é um Estado que abandona a neutralidade desejada e impõe o ateísmo militante (ou, se se preferir, o “laicismo”). A laicidade, reconhecendo a dimensão espiritual do ser humano e o pluralismo que caracteriza as sociedades modernas, abre espaço e beneficia do contributo das religiões para a vida em sociedade. O laicismo procura reduzir o religioso à esfera privada da consciência e expulsar Deus da vida pública. A laicidade convive com as religiões, enquanto o laicismo procura remetê-las para o silêncio dos locais de culto. Não existe nada de errado em o Estado admitir a presença de símbolos ou manifestações religiosos no espaço público, sobretudo quando grande parte da população neles se revê: o Estado é laico, mas a população (que aquele visa servir) não o é.

2. Significa isto que todas as religiões merecem igual tratamento da parte dos poderes públicos? Sim, de um ponto de vista jurídico; mas não, de uma perspectiva política. O Estado não deve ignorar a herança, o peso e a representatividade que cada religião ocupa no respectivo país. No diálogo que estabelece com a sociedade, o Estado não pode deixar de atender aos grupos ou organizações mais representativos. O princípio é o mesmo que subjaz ao diálogo com as organizações sindicais: todas gozam de igual tratamento jurídico, mas nem todas podem ter assento em sede de concertação social. Tratamento diferenciado não se confunde com tratamento privilegiado ou discriminatório, como reconhece, a este respeito, o constitucionalista Jorge Miranda. Assim, é natural que uma instituição religiosa que promova uma série de obras de assistência e de promoção social (e, portanto, que coadjuve o Estado na prossecução dos seus fins) mereça o apoio dos poderes públicos e possa até participar mais activamente, em função do seu conhecimento, nos processos de decisão directamente relacionados com essas mesmas funções. De resto, este princípio vale tanto para países de maiorias cristãs como para países de maiorias muçulmanas.

Não deixa de ser curioso constatar que, num período em que tanto debatemos formas de conter a influência do islamismo no Velho Continente, ninguém se preocupe em defender aquela que é a nossa maior herança. Talvez um dia compreendamos que a maior ameaça à nossa identidade e às nossas raízes judaico-cristãs não é um qualquer inimigo externo; são mesmo os nossos complexos de laico.

Advogado