Diz-se que os filhos são uma forma simbólica de lidarmos com a angústia da morte. Talvez isso ajude a perceber que os doentes com SIDA, numa altura (até meados dos anos 90) em que só tinham como horizonte a morte a curto prazo, insistissem em ter filhos. Era uma ideia que os médicos desencorajavam: os riscos eram grandes, tanto para o parceiro não infectado como para a futura criança. Mas os riscos não eram iguais para todos. Ao contrário dos casos em que é a mulher a pessoa infectada, nos casais em que é o homem o parceiro seropositivo o risco de transmissão durante a gravidez é nulo porque os espermatozóides não são infectados pelo vírus da SIDA. São os vírus que existem em suspensão no líquido seminal, ou nos raros linfocitos que por lá andam, que podem infectar a mulher. Nestes casos, o risco são as relações sexuais não protegidas.

Um médico italiano, Augusto Semprini, do hospital universitário de Milão, idealizou um processo que permitia separar os espermatozóides do resto do líquido seminal, a que deu o sugestivo nome de lavagem de esperma (sperm wash). A partir de 1989, ele e a sua equipa iniciaram um programa de reprodução assistida para casais sero-discordantes (em que o homem era seropositivo e a mulher não). Os resultados foram sendo publicados no Lancet e no British Medical Journal. Em 1997, Semprini contava com mais de 1000 inseminações realizadas em 350 casais, 200 gravidezes e, sobretudo, nenhum caso de contágio.

Programas semelhantes ao italiano começaram em França e nalguns outros países europeus. Em Portugal, nenhuma das unidades de fertilidade dos hospitais públicos se chegou à frente. O programa acabou por avançar em Lisboa graças à conjunção fortuita de um serviço de Doenças Infecto-contagiosas com forte espírito de missão e serviços de Obstetrícia e Patologia com directores com coragem e visão.

Tive a sorte e o privilégio de estar nesse hospital, nessa altura. A equipa era multidisciplinar, envolvendo infecciologistas, obstetras, patologistas e psicólogos. Eu era o patologista. Foi uma experiência inesquecível. O programa não era clandestino mas também não gozava dos favores oficiais. Muito trabalho foi feito nas horas que sobravam de outras tarefas. Aconteceu por diversas vezes convergirmos todos para o hospital às onze ou à meia-noite, ou ao domingo, para realizar uma inseminação. A aventura acabou em 2008. Outros hospitais em Lisboa, com técnicas de fertilização mais eficientes, iniciaram por fim os seus próprios programas com casais sero-discordantes e não fazia sentido continuarmos.

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Recordo frequentemente aqueles casais, homens e mulheres unidos por uma difícil aposta de amor onde tantos outros teriam soçobrado. Gente que, ao contrário de tantas “minorias” que passam os dias a encher-nos os ouvidos e a gastar-nos a paciência, não se vitimizava nem tinha uma agenda mediática. E recordo as crianças, porque conheci muitas delas: os pais iam ao hospital apresentá-las à nossa equipa, como se fôssemos gente da família. Penso sempre nelas como crianças com sorte: quantas haverá que tenham sido assim tão firmemente desejadas? E recordo-nos a nós, que tivemos o privilégio de as ajudar a nascer.

Para todos, um santo Natal: celebração do nascimento de Cristo e memória das festas pagãs do solstício de inverno, rituais de regeneração e fertilidade.

Médico patologista