Um coup d’état ou golpe de estado é, de acordo com o Cambridge Dictionary, um evento repentino no qual se derruba ilegalmente um chefe de estado que foi eleito de acordo com a Constituição, e quase sempre de forma violenta e com o envolvimento de militares.

No dia 31 de agosto de 2016, após cumprir 608 dias do mandato de reeleição oferecido por 51,6% dos eleitores brasileiros, Dilma Rousseff foi afastada legalmente e definitivamente da presidência do Brasil através de um processo longo, sem surpresas, seguindo o rito constitucional e com zero participação dos militares. [O fatiamento do impeachment foi o único desrespeito à Constituição: no mesmo dia que o Senado decretou o impeachment de Dilma, votou que ela não estaria inelegível pelos próximos oito anos. A Constituição previa que o presidente impedido deveria ser inelegível por oito anos.] Houve muitas manifestações dos que concordavam e dos que discordavam com o impeachment, como assim deve ser numa democracia vibrante.

Dilma foi impedida por cometer um crime de responsabilidade. Ela usou e abusou do uso de dinheiro de bancos estatais e de recursos do FGTS (a poupança que o trabalhador brasileiro é forçado a fazer para a reforma) para financiamento de programas sob a tutela do Tesouro Nacional, as malfadadas “pedaladas fiscais”. Não foi a primeira presidente a utilizar este recurso, mas certamente foi a única que não deixou dúvidas que o fazia para diminuir artificialmente o rombo das contas do governo federal. Segundo dados de um relatório do Banco Central do Brasil e divulgado pelo jornal Folha de São Paulo, durante o governo FHC (1995-2002), a dívida acumulada com os bancos não passou de 0,1% do PIB. O correligionário e principal responsável pela eleição de Dilma, Lula (2003-2010), não presenciou durante o seu mandato níveis maiores que 0,2% do PIB. Dilma, por sua vez, autorizou ou aceitou dívidas em torno de 1,0% do PIB, com forte tendência de alta. O uso extensivo e crescente das “pedaladas” e o seu nível relativo aos dois presidentes anteriores funciona como uma fácil denúncia a qualquer auditor de contas que algo estava fora de controle. Assim pelo menos no dia 7 de outubro de 2015 denunciou o Tribunal de Contas da União que as contas do governo de Dilma relativas a 2014 estavam reprovadas.

No dia 2 de dezembro de 2015, o então presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha aceitou a abertura de processo de impeachment, após a recusa de mais de 30 pedidos anteriores. Em 17 de abril de 2016, a mesma Câmara admitiu o processo de impeachment com 367 dos 513 deputados votando a favor, 25 a mais do que o necessário. Finalmente, no último dia 31 de agosto, 61 dos 81 senadores (7 a mais que o necessário), votaram definitivamente a favor do impeachment. Num último ato em 8 de setembro, envolvendo o Judiciário, o Supremo Tribunal Federal negou uma liminar protocolada pelo advogado de defesa de Dilma para anular a derradeira sessão do Senado.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Decerto, o impeachment é um acontecimento drástico em um regime presidencial, mas certamente respeitou mais as tradições democráticas brasileiras – que já haviam presenciado o impeachment de Collor em 1992 – do que a formação do governo português em 2015 respeitou as tradições democráticas portuguesas. Estas foram quebradas ao não se respeitar a não união de partidos moderados com partidos extremos, a fim de que o Partido Socialista (moderado), ao se unir ao Bloco de Esquerda (extremo) e Partido Comunista (extremo) negassem o voto da maioria de 38,5% de eleitores que deram um amplo mandato à coalizão moderada de direita, entre PPD/PSD e CDS-PP.

Mas visto sob a perspectiva de um continente que se acostumou com o populismo de esquerda, que muitas vezes visou mais à conquista e perpetuação no poder pelos que se dizem defensores dos pobres – Peron, Vargas, Chavez, Kirchners, Maduro, Lula, etc… – em comparação a um governo que tivesse como objetivo a implantação de medidas estruturais, quase sempre impopulares, com o fim de diminuir as diferenças sociais, visto sob esta perspectiva, o impeachment é uma solução natural e uma forma de reequilibrar os três poderes, quando o Executivo, em governos dominados por líderes populistas, desrespeita o Legislativo e o Judiciário.

Vale ressaltar que se Dilma não tivesse tomado decisões económicas desastrosas e não fosse tão desprovida de habilidades políticas, talvez não houvesse motivação política para se levar o impeachment a cabo. Não é certo se o Robespierre dos trópicos, o juiz Sergio Moro, teria força para aprofundar o processo judicial que talvez mais tenha influenciado a história do Brasil, o temido “Lava Jato”, uma verdadeira caça às bruxas, que já cumpriu mais de 100 mandados de busca, apreensão, prisão temporária, preventiva e coercitiva e não poupou nenhum lado do espectro político brasileiro.

Claro que assim como Chavez e Maduro acusam qualquer indício de mudança de poder como golpe, assim como Erdogan afastou juízes, proibiu a saída de professores universitários e persegue jornalistas para “proteger” o seu país de um “golpe” cujos fatos não estão muito claros, Dilma e sua turma adoram propalar para todos e, em particular, para a imprensa internacional que há um golpe no Brasil. Há até membro da turma da Dilma (a filósofa e professora da USP Marilena Chauí) que acusa Sergio Moro de ser um espião infiltrado do FBI. Claro, aos olhos dos estrangeiros menos informados que veem Lula e seu partido como os representantes do povo contra a velha elite branca machista, a explicação simples dos fatos cai como uma luva. Mas por que não ao menos considerar a perspectiva de que as instituições brasileiras passam por um amadurecimento, e a turbulência a curto prazo trará um país onde os incentivos para corrupção, principalmente de políticos, se reduzirão fortemente, com imensos benefícios a longo prazo?

Fábula do golpe ou revolução francesa à brasileira?

Professor Auxiliar da Católica Lisbon School of Business & economics