Estou em férias (ou de férias, para os menos puristas). Não quero saber das trocas e baldrocas da política nacional, do bes ou do partido socialista. Apetece-me escrever sobre o que me apetece escrever. O Observador deixa e eu estou-lhe grato.

Um homem com aspecto de avô está ao pé de uma criança, quase um bebé. Ela chora, ele pega nela ao colo. Redobra o choro. A mãe entra, tira a criança do colo do homem. Ela cala-se. A mãe devolve-a ao homem, que lhe acaricia os cabelos. A criança sorri. Sentado no paredão, um casal de namorados contempla o mar. Está um daqueles dias em que o mar se veste de prata, reflexos de magoar os olhos sobre as águas só ligeiramente agitadas.

Eles beijam-se, longamente um longo beijo sem fim, para eles não tem fim e nós desviamos a vista e assim de repente parece até que o mar se agita, vagas nervosas aproximam-se de terra, acariciam o paredão. E agora cruzo na zona pedonal onde o social em geral não se cruza um casal cujo apelido sei ser espírito santo (prometi, eu sei, perdoem), imagino-lhes as contas congeladas, a aflição (repentina) dos fins de mês, imagino e compadeço-me. “Vais-te fazer insultar”, diz alguém que espreita esta prosa, encolho os ombros, os meus leitores farão o que quiserem, têm o crédito todo do mundo pela simples bondade de me lerem, escutarão, criticarão, têm bom gosto os meus leitores. Penso então como resistirá aquele amor às agruras da carestia e das privações. Em casa onde não há pão, diz-se, todos ralham e ninguém tem razão, mas isso é sabedoria popular e eles não pertencem a essa classe, é sabido, por isso não ralharão e terão sempre razão. E amar-se-ão, ainda que sem dinheiro. Acho…

Num restaurante da moda – agora há um restaurante da moda em cada esquina – está um par bem vestido, ela magra como as vespas, ele de casaco versace e gravata. Jantam: sopas frias de entrada, um belo peixe (pareceu-me dourada, simpatizo muito com a dourada), um doce com ar de farófias a arrematar, antes dos cafés; não trocaram uma só palavra desde o início da refeição. Recordo Piccoli e Bulle Ogier (na pele de Severine), no filme de Oliveira “La belle toujours”, explícita sequela de Buñuel, em que os dois jantam durante uma boa terça parte do filme à luz das velas, sem falar. Piccoli suspira com frequência.

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Na praia onde estive a semana passada, uma criada velha segue com zelo os miúdos, que agora já têm para lá de uma dezena de anos e manifestamente não acham graça à vigilância mandatada pelo estrito rigor dos ditames patronais. “Não lhes tire os olhos de cima”, mandou a senhora, burguesa fogosa dos quintais de Lisboa, habituada a comandar a criadagem. Na família há gerações, a velha senhora teme o desemprego e o vazio, ela que os teve ao colo, da mãe aos filhos, e os consolou a todos em noites de pesadelos, lhes assoou o ranho, limpou as imundícies e, à socapa, lhes deu guloseimas proibidas nos dias mais difíceis de ralho paterno.

Os miúdos jogam à bola no areal e ela, por momentos, abandona-se a si própria, senta-se numa toalha na areia e, sem mais quê, adormece. Está idosa, a senhora. Ama e teme. Hoje falo do amor. Há tantos tipos! Alberoni explicou um deles num livro de sucesso: tratou mais precisamente do enamoramento, um movimento colectivo de dois e que apenas a dois se vive, como se os amantes construíssem o seu próprio mundo, com uma linguagem, narrativas e até anedotas específicas e exclusivas, que mais ninguém conhece, visita ou profana; só eles o podem habitar. Mas além desse amor – o dos amantes, do “fogo que arde sem se ver”, da “chama infinita enquanto dura” (vénias respectivamente a Camões e Vinícius) – muitos outros existem, andam por aí, são profundos, ternos, verdadeiros, eternos e belos. E sim, também neles há pelo menos um desvão, um espaço apertado mas único e exclusivo de quem o sente – porque só o amante e a coisa amada neles residem.

Intriga-me contudo a forma como os novos meios de comunicação invadiram o mundo antes secreto, sagrado e inexpugnável do amor. Ele são mensagens em sms, tweets e instagrams, ele são vídeos no youtube, declarações públicos via facebook, ele são longas conversas pelo skype. Já ninguém escreve cartas de amor, Fernando! Será? Eis o que vi: num jantar de família, a longa mesa repleta, um adolescente troca mensagens com a namorada, alheio ao que o rodeia; são ridículas as mensagens, como as de Fernando para Ofélia, e então? Ao sair da consulta radiológica, a mulher aliviada escreve no FB “é benigno, amo-vos muito” e 333 amigos rejubilam, fazem like, escrevem “boa, miúda”, “tive uma experiência assim há dez anos e nunca mais esqueço a sensação, deves estar muito feliz”, “também te amo”; amor? Algures num filme de Woody Allen diz-se ser essa (“é benigno”) a mais bela frase da língua (inglesa, no caso); amar é pois partilhá-la com quem se ama, mesmo os amigos do FB. Eis o que vi: um pai há muito afastado da filha não vê os netos entretanto nascidos, ela não lhe perdoou a traição feita à mãe, um amor de ocasião separou-os, e o velho arrependido, é avô mas não inteiramente, sente o apelo da carne, morde-lhe o espírito a saudade mais profunda, outra forma de amor, o delicioso pungir de acerbo espinho que canta Garrett, e então um dia, quase sem pensar, comandado pelos dedos, escreve “perdoa-me” no iphone e um sent depois recebe a mensagem “vem cá hoje conhecer os teus netos, pai”, o filho pródigo revisitado, neste caso o pai pródigo, o amor restaurado, pois ele tem ademanes de magia, é curto e imenso, rígido e ciumento, flexível e apaixonado, belo e terrível, o amor é a vida. Ah, e ainda vi dois jovens de casamento marcado incapazes de se separar por momentos, a trocar selfies desesperadamente, como se não houvesse amanhã e amanhã não se unissem para sempre, com corações pré-construídos a acompanhar.

A criança agora dorme, o homem segura-lhe o dedo polegar e contempla-a com desvelo, não há cena mais foleira, depois a mãe assoma à porta, sorri e regressa à labuta, apaziguada. O casal de namorados interrompe o beijo, contempla o Atlântico e diz as palavras que o sonho inventa novas a cada instante: amo-te; e voltam a beijar-se e a agitar as águas. Os espírito santo deitam-se cansados, não sabem what tomorrow will bring (os leitores terão de me desculpar, é um cansaço de Pessoa, eu sei, mas não resisto, nunca resisti), e abraçam-se, dormem abraçados, há muito que não dormiam assim, será amor ou desespero, afecto ou medo? O casal silencioso do restaurante regressa a casa e, sem muito mais palavras (algumas, claro, “telefonaste ao jardineiro?”, “vou-me deitar”, “hum”), despede-se do dia, ele pensa na amante cujas mensagens lerá quando a mulher estiver a dormir, ela temerosa de uma noitesem sonhos, ou será o contrário, mas isso não posso saber. E a velha criada, no seu quarto de solteirona sem filhos, na casa da senhora, fecha os olhos sobre um passado feliz, quando as crianças eram bebés e eram suas, inteiramente suas, e ela lhes dava todo o amor que possuía – ainda sobra muito e receia não ter mais a quem o dar. Talvez se engane…

Até na pessoa mais cansada o amor é como um despertar, escreveu Alberoni.

 

Professor da Católica Estudos Políticos