Estimados leitores,

Pelas estórias de Portugal, “crónicas de verão” 2016, perpassam figuras de outrora que visitei graças à minha máquina do tempo. Durante a viagem apercebi-me de pormenores que a História dos compêndios não regista: gente comum elevada à grandeza, reis e rainhas em seus ódios e amores, o recorrente enriquecimento sem causa do país antes da queda.

Reflicto hoje sobre os Grandes de Portugal. Sobre a Grandeza dos verdadeiramente merecedores, numa História cheia de vultos mais ou menos obscuros, com os nomes espalhados pelas ruas e praças do país. Sobre a diferença entre o que julgamos valer e o valor das obras que realizamos. Porque não vale o mesmo o bronze de Telma, conquistado com (literais) sangue, suor e lágrimas e o trabalho para o (outro) bronze de tantas insignes figuras deitadas nos areais quentes do sul, a sonhar com o dia em que alguém descerrará uma lápide com o seu nome numa rua de Lisboa .

Num país em que até já há um aeroporto com nome de futebolista (e outro jaz no Panteão), reflectir sobre a verdadeira grandeza e a ilusão dela é fundamental. É nas pequenas estórias da nossa História, raramente contadas ou já esquecidas, que melhor se percebe a diferença.

A terceira de seis estórias da História de Portugal: das ruas e praças de Portugal

“É só mais uma saldanhada”, assegura a rainha.

No paço da Ajuda vai grande a agitação. O velho Saldanha acaba de chegar à cabeça de três corpos militares, um batalhão de caçadores, soldados de artilharia e infantaria 7. “Foi general aos 27 anos, lutou no Buçaco, em França, contra o meu tio-avô, contra os setembristas, governou o Rio Grande do Sul”, nota Dom Luís, “não é um cabeça de vento”.

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Vêm informar Sua Majestade que o Marechal Saldanha pede para ser recebido. “Há peças apontadas ao Palácio”, diz-se. No largo fronteiro posicionam-se os soldados do governo. “Quem são os nossos?” pergunta Dona Maria e outra vez lhe respondem: infantaria 1, lanceiros 2, artilharia 3. “Já houve tiros”, lembra o oficial às ordens, como se ninguém os tivesse ouvido. A rainha insta o marido a ser firme: “o Senhor é o Rei e ao Saldanha só verdadeiramente importa a sua própria importância”. “Mas é o Saldanha…” lamenta Dom Luís.

“Que entre o senhor duque”, decide finalmente. No silêncio da sala entram arrastados os 80 anos do velho; retira-se Maria Pia, como sempre faz em assuntos de Estado, retiram-se todos. Ficam sós el-Rei e Dom João Carlos Gregório Domingos Vicente Francisco de Saldanha Oliveira e Daun, 1º conde, 1º marquês e 1º duque de Saldanha, Marechal-general do exército português, par do reino, antigo embaixador em Londres, neto de Pombal. Ninguém testemunha o encontro, ninguém pode falar do que foi dito naqueles breves minutos. Só eu, que – bem resguardado na máquina do tempo – ouvi tudo.

“O que me estás a fazer, Saldanha?”, questiona-o Dom Luís, num tom entre a desculpa e a censura. “Vossa Majestade perdoe”, responde o outro numa voz arrastada, e atabalhoadamente explica tratar-se do presidente do Conselho: “é urgente derrubar o Loulé”. O rei fita-o por momentos, olhos vivos sobre uns olhos meio cegos e diz: “há pouco, Saldanha, pediu-me Espanha para reinar sobre toda a Ibéria”. Pausa e prossegue: “imaginas-me senhor das terras de entre os Pirenéus à Roca, dos Cantábricos às portas de África?”. Assarapantado, o velho não percebe o intuito daquilo. Só quer punir o Duque de Loulé, retirá-lo do governo e acabar com aquele ministério progressista que o desrespeita; não está ali para ouvir fantasias.

“Falou-se muito por cá e disse-se que recusei, pois recusei, sabes porquê?”. Todos conhecem a história da carta enviada por Dom Luís a negar a vontade espanhola; Saldanha abana a cabeça. “Dizem que escrevi uma carta a afirmar que nasci português e quero morrer português, e é verdade, mas porquê recusar uma honra que engrandeceria a nação e a faria cabeça duma união ímpar em toda a Europa?…”. O Marechal balbucia, perplexo ”sim, porquê, Majestade?..”.

“Recusei porque este é o país do meu avô, um país de gente que andou pelo Mundo à volta, de bravura e desconcerto; fosse eu para Madrid reinar, como me pediram e tantos sugeriram, o que restaria da grandeza antiga lusitana, engolida pela geografia peninsular e a sobranceria de Castela?”. Faz uma pausa, observa o efeito, já lágrimas assomam ao rosto pergaminhado do velho. “Resisti, Saldanha, disse não, e muito me custou, mas Portugal está primeiro”.

Não lhe diz el-Rei como as coisas se passaram, mas um escrito da altura, sem assinatura nem referências, talvez apócrifo, esclarece: “ibéricos ter-se-iam os portugueses tornado, tam de hespanha como os catalãs ou quiçá, não fora a intervenção da senhora de Sabóia. Como agiu ella?, a idéa foi della, chantageô seu real marido, ameaçando sutilmente revelar os (vários) frutos de seus pecados! Luís inda resistiu, evocou Antero e Olliveira Martins, ardentes iberistas, mas ai, – muy apaixonado -, e talvez temeroso do escandallo, cedeu”. Nessa noite, escritas as célebres palavras a rejeitar a monarquia peninsular, o que seu pai de resto fizera antes dele, a Rainha leu-lhe um belo poema de amor pátrio, ó sublime lição, antes de o enlaçar, amorosa

“Jardim da Europa à beira-mar plantado
de loiros e de acácias olorosas;
de fontes e de arroios serpeado,
rasgado por torrentes alterosas,
onde num cerro erguido e requeimado
se casam em festões jasmins e rosas,
balsa virente de eternal magia
onde as aves gorgeiam noite e dia.”
(poema de 1861 de Tomás Ribeiro)

Diz-se até que ela lha ditou (à carta) mas isso não posso confirmar. Voltemos ao Saldanha, transido de real ardor e em comovida retratação: “Perdoe Majestade, não serei eu… não eu… a destruir…” Dom Luís sorri, coloca mão protectora sobre o ombro do intimador e conclui, “volta a casa, vou chamar o Loulé, começa a preparar o teu Ministério”. Ao sair da sala, Saldanha cruza-se com Dona Maria Pia de Sabóia, que em voz alta lhe lança a frase condenada a perdurar: “se fosse eu, fazia-o já fuzilar”. Não ouviu a resposta, dita entre dentes e apenas para si próprio, mas que eu, convenientemente perto, pude ouvir: “se fosse eu, não estaríeis aqui”.

Este episódio da monarquia constitucional ilustra a instabilidade de um país ainda pobre numa Europa de precários equilíbrios políticos. Um país povoado de figuras encantadas pela sua imagem no espelho, protagonistas da História do século XIX português de variáveis humores; registo apenas o ápex efémero de egrégios portugueses (e italianas…) na dança frenética de tantos medíocres cujo nome sobrevive ainda, por vezes, na toponímia nacional.

Quanto ao Marechal Saldanha, viu o seu desejo realizado: o duque de Loulé foi demitido, ele formou um Ministério. Ninguém o queria integrar, durou apenas 100 dias nesse ano turbulento de 1870. Sucedeu-lhe o marquês de Sá da Bandeira, que já anteriormente desempenhara as funções e também não esteve muito tempo no poder. Foi substituído pelo marquês de Ávila e, mais tarde, por Fontes Pereira de Melo.

O duque de Saldanha, um dos políticos mais importantes do século XIX português, terminou a sua carreira ao serviço de Portugal como embaixador em Londres. Hoje ocupa uma praça central de Lisboa, perto das ruas que são de Loulé, do duque de Ávila, da Fontes Pereira de Melo. Dom Luís está mais longe, na praça contígua à Ribeira. No seu centro ergue-se, altaneira, a estátua de… Sá da Bandeira.