Estimados leitores,

Por esta altura, já todos quantos se dão ao trabalho de me lerem entenderam que estas crónicas, relatando episódios do passado português, respeitam também ao presente e ao futuro, traços rápidos e impressionistas sobre o país que somos e povo que o habita. Um quadro barroco qb, simbólico, às vezes glorioso, por vezes patético, quase sempre banal.

Todos conhecem a história do penúltimo Rei de Portugal, certo? Mas será mesmo? Graças à máquina do tempo, mais clara e eficaz em datas recentes, deixo algumas linhas sobre Dom Carlos. Sinais do tempo que ao tempo unicamente não pertencem, porque são de todos nós.

A quarta de seis estórias da História de Portugal (em três partes): Dos brandos costumes.

Primeira parte: El Rei Dom Carlos.

Não há na nossa História rei mais incompreendido. Rico em facetas e matizes, viveu a extraordinária circunstância de um fim de século europeu de todos os perigos. Artista, agricultor, cientista, caçador, ornitólogo, com tanto que fazer, terá descurado o reino? Ou terão sido os adiantamentos (as dotações reais) a levar ao seu assassinato? Qual a responsabilidade de João Franco, o primeiro ministro a quem tantos atribuem a culpa pela morte do rei? E se o escutássemos… o que, graças à magia da máquina do tempo, pude fazer?

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Segundo parte: O ogre expiatório.

João Franco, no sol-pôr da vida, goza os derradeiros dias na sua casa de Lisboa. O homem que quis impor ao país uma solução musculada pode ainda, nesse período do fim, assistir ao retomar do curso costumeiro: políticos confusos, um homem providencial, o fim da liberdade. Em conversa com interlocutor anónimo, explica que os militares manterão o poder por anos, pondo definitivamente na ordem o rebotalho civil, os iluminados de pacotilha, os vendilhões do templo. As suas palavras amargas escurecem a noite que cai: garante que o general Vicente (sic) tem as rédeas do poder nas mãos, solidamente unidas às do Carmona (sic), apoiados nos funcionários e amanuenses, mas apenas enquanto deles precisarem. E Salazar? Um tecnicozito competente de quem não rezará a história, opina.

Isso diz Franco, antes de voltar à “sua” ditadura: traídos el-Rei, ele próprio, Portugal. Enumera os traidores. Dos republicanos confessa nunca ter esperado conversão, mas alguns desceram a ignominiosos patamares. E recita Bendita seja a revolta./O João Franco é um tirano de terceira classe, com bónus em viagem de ida e volta./Um Nero vestido de brim./Assim como quem se diz marquês de Pombal a fazer ditadura numa barraca de feira de Belém (…).

Olho espantado aquele homem velho e derrotado que ao lusco-fusco da derradeira véspera declama António José de Almeida. E ao dizer, das palavras sobre si ressuma um orgulho inabalável pelo que foi, antes da morte d’el-Rei, do opróbrio geral, do exílio… Retoma fôlego e acrescenta que responsáveis são quantos contribuíram para a morte de Carlos, pois que há muito o rebotalho, os pseudo-intelectuais, os que se excitam com as modas alheias, decidiram acabar com reis e rainhas, nobres e suas cortes; querem chamar-se republicanos, substituir o brilho da coroa pelo cintilar dos réis ($) e encher os bolsos deles; conclui, taxativo, que para chegar a esse objectivo só havia um caminho: o regicídio. “Estava há muito escrito”, diz.

Recorda-lhe o interlocutor as notícias coevas que asseguram ser ele, João Franco, o verdadeiro alvo do 1 de fevereiro. Enterra-se na poltrona, como quem procura já o alívio da profundidade e do esquecimento; não responde logo. Toma fôlego e volta a declamar

Jaz el-rei entrevado e moribundo/Na fortaleza lôbrega e silente…/Corta a mudez sinistra o mar profundo …/Chora a rainha desgrenhadamente …/Papagaio real, diz-me quem passa?/É o príncipe Simão que vai à caça./

Os sinos dobram pelo rei finado …/Morte tremenda, pavoroso horror!…/Sai das almas atónitas um brado,/Um brado imenso d’amargura e dor …/Papagaio real, diz-me, quem passa?/É el-rei D. Simão que vai à caça.

Cospe o estrangeiro afrontas assassinas/Sobre o rosto da pátria a agonizar …/Rugem nos corações fúrias leoninas,/Erguem-se as mãos crispadas para o ar!…/Papagaio real, diz-me quem passa?/É el-rei D. Simão que vai à caça.

A Pátria é morta! A Liberdade é morta!/Noite negra sem astros, sem faróis!/Ri o estrangeiro odioso à nossa porta,/Guarda a Infâmia os sepulcros dos Heróis!/Papagaio real, diz-me, quem passa?/É el-rei D. Simão que vai à caça.

Tiros ao longe numa luta acesa!/Rola indomitamente a multidão …/Tocam clarins de guerra a Marselheza …/Desaba um trono em súbita explosão!../Papagaio real, diz-me, quem passa?/É alguém, é alguém que foi à caça/Do caçador Simão!…

Caçar o caçador Simão, murmura. O poema é de Guerra Junqueiro, escrito a 8 de Abril de 1890, 18 anos antes do regicídio. Repete “caçar o caçador Simão”. Mas o outro insiste, recorda-lhe que Brito Camacho, fundador do Partido Unionista e membro do Partido Republicano disse que o haviam de obrigar “às transigências que rebaixam ou às violências que comprometem”. Comprometeu-se, tornando-se um alvo maior. Questiona-o sobre o decreto assinado na véspera do regicídio, a agravar as condições de detenção dos revolucionários. Franco soergue-se na poltrona, não quer ainda terminar, insiste que a morte do Rei estava há muito decidida e nada a teria podido impedir. É certo que sua Majestade vivia preocupada com os rumores, chegando a interrogá-lo nestes termos: “Oh! João, tu disseste que irias caçar no terreno dos republicanos. E se eles caçam a minha pessoa ou a tua? – Pessoa alguma se atreveria, meu senhor. – Eu sei lá, João… eu sei lá.” (citação de Raul Brandão).

Mas nesse dia fatídico porque estava o Terreiro vazio de polícia, porque seguia el-Rei em carro aberto sujeito à bala do caçador de Simão? O velho parece desaparecer na poltrona em que se enfia, os olhos perdem brilho, some-se a voz. Após longo intervalo, em que o silêncio reina na pequena divisão mergulhada na obscuridade, diz: “El-Rei era teimoso. Era teimoso. Não quis”.

Terceira parte: morre El rei

Escreveu Dom Manuel II, último rei de Portugal, que “(…) Meu Pae não tinha nenhuma vontade de voltar para Lisboa. Bem lembro que se estava para voltar para Lisboa 15 dias antes e que meu Pae quis ficar em Villa Viçosa: Minha Mãe pelo contrário queria forçosamente vir. (…)”. Discorda José Brandão: “(….)Vestida de escuro, a rainha vai calada e tem um aspecto triste, que lhe não é próprio. (…) O seu silêncio é significativo do desagrado com que regressa a Lisboa. Na véspera pedira ao filho para convencer o rei a atrasar por alguns dias a viagem, mas a diligência resultara inútil. Para D. Carlos estava fora de questão ficar mais um dia em Vila Viçosa (…)”. Quem tem razão? Pelo que ouvi, foi o Rei que quis voltar…

Mais uma volta na máquina do tempo e aterro no Terreiro do Paço. Está a multidão reunida e vejo-o logo: barba negra, vestido de varino, colado a uma árvore em frente ao Ministério. É o Buíça; distingo uma silhueta de carabina debaixo do gabão, como é que ninguém a vê? Depois tudo se passa depressa, conta Brandão: (…) Nem uma nuvem. “Tarde sem par” – escreveu Ramalho. (…) O rei e a rainha detiveram-se uns minutos, com o João Franco e o Vasconcelos Porto, que queria mandar vir um esquadrão de cavalaria para acompanhar o rei. D. Carlos opôs-se. O carro descoberto partiu a chouto, com toda a família real junta. Ao pé da estátua, um grupo… Disseminados pela Arcada, alguns polícias e, sentado num banco da praça, um homem de varino, que veio, sem precipitação, colocar-se à porta do Ministério do Reino.

(…) “Eu assisti – diz o Navarro. – Fui para lá uma hora antes fumar o meu charuto. Três descargas cerradas partiram da Arcada do Ministério da Fazenda. Ficou tudo desorientado. Os polícias deitaram a fugir…” (…) “Eu estava a quatro passos – confirma o pintor Melo. – Um homem subiu às traseiras do carro, olhou o rei cara a cara e deu-lhe um tiro de revólver. Vi um fumozinho branco sair-lhe do pescoço. O Rei voltou-se e, cem anos que eu viva, nunca mais me esquece a expressão de espanto daquela máscara. Disse uma palavra que não percebi bem…” – “Ao primeiro tiro – continua o Navarro – a cabeça do rei descaiu para a frente, ao segundo tombou para o lado.” O Buíça, que tirara a carabina debaixo do gabão, apontava e descarregava. O príncipe real ergueu-se – caiu varado. A rainha, louca de dor, sacudia o Alfredo Costa com um ramo de flores. – Então não acodem?! Não há quem me acuda?! – Ninguém. Um cartucho falhara ao Buíça: sacou-o, e ia apontar outra vez, quando o Francisco Figueira o estendeu à cutilada. (…) Sucederam-se então os tiros sem interrupção. Muita gente falou em descargas… A Polícia disparava os revólveres a torto e a direito. O Correia de Oliveira esteve para ser morto: “Vinha de chapéu alto e foi o que me valeu!… Um polícia avançou direito a mim, com o revólver apontado, exclamando como um doido: – Matei agora um! matei agora um! (…)”.

Assim começou a acabar a monarquia em Portugal. Foi há pouco mais de 100 anos.