Há pouco mais de um mês, tive a felicidade de conversar com D. Catarina (nome fictício) (*), mulata católica de noventa e três anos de idade que conserva a graça de mulher bela de discurso cativante e com uma vida partilhada quase a meias entre o tempo colonial e o tempo pós-colonial em Moçambique. Faz o balanço das décadas recentes em tom negativo a baixa voz, tal como outros que assim simulam evitar os ouvidos e olhos do ‘Big Brother’ libertário, espelho dos recalcamentos a que vivem sujeitos os que não alinham em versões oficiais, muito mais quando se trata de minorias raciais, um ‘Ai Jesus!’ dos europeus, mas que pelas Áfricas pagam a fatura pesada da ‘liberdade progressista’ acarinhada à distância por uma parte dos europeus.

Salto o assunto para tentar descodificar uma face pouco visível do que, na ausência de melhor, designamos por globalização que vai reinventando os significados do espaço e do tempo. Nestes dias de crise por causa da baixa dos preços do petróleo, a redescoberta crescente de Portugal por angolanos vai esfriando a sua recente paixão pela China, África do Sul ou Brasil e pode marcar a antecipação do regresso inevitável ao pai assassinado, o pai português. O caminho da casa paterna é muitas vezes reencontrado à medida que as arrelias da vida vão pesando ou que a idade avança. Este é, no entanto, também um tema que fica em banho-maria, posto que enquanto formos vivos teremos tempo de a ele retornar.

D. Catarina, moçambicana, tem ascendência na nobreza portuguesa. Faz questão de mostrar a reprodução do brasão em madeira da família Azevedo Coutinho conservado na parede da sala de entrada da sua casa em Quelimane, no norte de Moçambique, em conjunto com um rol de fotografias expostas em mesas, cómodas ou paredes. Suas, do marido (também mulato), dos seis filhos, dos netos e bisnetos que vivem em Moçambique, Portugal e não só. Viúva, D. Catarina contabiliza vinte e um netos e vinte bisnetos.

Dos seus relatos destaco um episódio. Nos anos cinquenta do século passado, grávida da segunda filha, D. Catarina saiu de casa acompanhada por um empregado, o ‘rapaz’. Ao passar perto do cemitério, viu um vulto branco que a fez parar. Para se certificar do que via, o instinto fê-la baixar os olhos por segundos. Ao voltar a levantá-los, o vulto tinha desaparecido.

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A vida e a gravidez foram seguindo com normalidade até que chegaram as dores do parto. Levaram-na para o hospital. Ao fim de dois dias a criança teimava em não querer nascer. D. Catarina – sempre faladora, bem-disposta e fumando o seu cigarro – disse que pediu ao médico que a deixasse regressar a casa por mais uns dias. Logo no regresso, a criança decidiu ver a luz do dia. Foi a única dos seus seis filhos a fazê-lo em casa, sendo que os demais preferiram o hospital.

Batizada católica com o nome de Maria Albertina (nome fictício), essa filha foi sempre boa aluna e nada problemática em criança, tal como os irmãos. No entanto, destacava-se dos irmãos pela solidão. Brincava sozinha, era muito sossegada, falava pouco. Um dia, ainda menina, Maria Albertina contou à mãe, D. Catarina, que tinha tido um sonho estranho. Apareceu-lhe uma mulher de branco com um objeto redondo nas mãos ornamentado por missangas de várias cores. Na altura, a mãe disse-lhe para não ligar ao sonho, porém o episódio marcou-a porque a filha era de poucas falas. Mas só muito mais tarde interpretaria aquele sinal, associando-o ao modo como andava vestida a sua avó negra curandeira, D. Rosa, nascida na Zambézia no século XIX e já falecida naqueles dias.

Ainda no tempo colonial, Maria Albertina envolveu-se com um militar português natural de Passos (Cabeceiras de Basto) que, no entanto, não dava mostras de querer assumir a relação. D. Catarina enfurecida com o comportamento abusivo dele, branco e mais velho do que a sua filha, apresentou queixa em tribunal. O desgosto piorou no dia da audiência. Perante o juiz, a filha, Maria Albertina, desautorizou a mãe ao defender, sem hesitar, o homem que a mãe acusava de ter abusado dela. Com vergonha de voltar a encarar o juiz, D. Catarina não teve como fazer avançar o processo em tribunal.

Entretanto, ficou a saber que o militar português ia ser transferido para uma cidade da colónia mais a sul. Antes de ele partir, D. Catarina, sempre enfurecida, falou com ele. Em jeito de ameaça, disse-lhe que levasse a filha porque tinha estragado a vida da menina. Eram os hábitos da época. Foi surpreendida pela repentina decisão do militar em levar consigo Maria Albertina para irem viver juntos longe de Quelimane, onde nasceu a primeira filha do casal e, pouco depois, formalizaram o casamento. Não mais se separaram até à morte dele, em Portugal, com cerca de oitenta anos. Hoje, a fotografia desse genro merece honroso destaque na parede da sala onde conversávamos.

A filha e o genro de D. Catarina permaneceram em Moçambique nos primeiros anos da independência, uma vez que o militar mantinha boas relações com os revolucionários da Frelimo. Porém, ao fim de cerca de dois anos, ele optou por abandonar o país. Samora Machel, o carismático primeiro presidente da então República Popular de Moçambique, terá autorizado pessoalmente que o português levasse o que lhe pertencia. O recheio da casa veio de barco para Portugal, enquanto o casal e os filhos viajaram de avião.

Uma vez por outra, D. Catarina passou a visitá-los em Portugal, até pela boa relação que manteve com o genro. Instalada em Bragança, com o correr do tempo, Maria Albertina começou a ter visões, a sentir-se desequilibrada e emocionalmente perturbada. Como as angústias e os problemas de saúde não se resolviam, os seus irmãos, em Moçambique, procuraram um curandeiro por suspeitarem não haver outra saída. Ela foi, então, à terra natal.

D. Catarina e os demais filhos presenciaram a cerimónia tradicional africana de tratamento espiritual de Maria Albertina, realizada não em Quelimane (centro-norte), mas no sul, em Ressano Garcia, numa povoação bem junto à fronteira com a África do Sul. Na cerimónia de tratamento houve danças, estados de êxtase, rituais. A ‘paciente’ encarnou o espírito da sua bisavó oitocentista, a curandeira D. Rosa. Regressada a Bragança, tornou-se médium, isto é, a vida impôs que transportasse com ela um espírito moçambicano (ou africano) para Portugal (ou para a Europa).

Não foram apenas as miscigenações culturais, raciais ou a ‘fuga de cérebros’ que a história pós-colonial acelerou. Foi também a ‘migração de espíritos’. Independentemente das crenças de cada um, Portugal e a Europa de hoje são também o seu território, tal como o catolicismo se tornou decisivo para muitas comunidades moçambicanas ou africanas de hoje. Há o ir e o voltar, o dar e o receber. E há o miscigenar do que na aparência é distinto, uma das características inatas do género humano. Às sociedades sobra apenas a capacidade de domesticar o que parece ameaçador, torná-lo tanto quanto possível familiar e benéfico.

Como as ligações às origens nunca se apagam, talvez um dia o secular espírito africano regresse à sua terra de origem, depois de passar por outros países europeus ocidentais, para além de Portugal, onde andam emigrados dois dos filhos de Maria Albertina, netos da simpática D. Catarina de Quelimane e trinetos de D. Rosa, a curandeira da Zambézia. É provável que cada geração deixe pela Europa e por outros continentes descendentes, quem sabe sujeitos às contingências dos espíritos.

O mundo reinventa-se continuamente, nunca foi o mesmo. Portugal não é mais o Reino de Portugal e dos Algarves. Pelas mesmas razões, as colónias e a metrópole podem não ser apenas antigas colónias e antiga metrópole que as independências separam, mas também peças de uma mesma entidade que permanentemente se reinventa, mesmo que estejamos longe de a conseguir definir ou atribuir-lhe um sentido. Os séculos que se seguem trarão a resposta, quem sabe se com a ajuda decisiva do lado invisível da vida, aquele a que chamamos ‘o lado dos espíritos’.

(*) A publicação do texto foi autorizada pelas visadas.