A adaptação é essencial à sobrevivência do negócio. Assim, há quarenta anos atrás, quando os governos da república impuseram aos bancos apertados limites à concessão de crédito, os construtores civis adotaram um novo modelo de negócio: a venda em projeto.

Para uma pequena empresa de construção, como eram quase todas nos anos 70 e 80, o investimento acumulado desde a aquisição do terreno, passando pelo projeto e obtenção de licenças, e finalmente a construção propriamente dita, era geralmente incomportável só com capitais próprios. A construção de um prédio era uma aventura, que durava no mínimo dois ou três anos, sempre a ver dinheiro a sair e nenhum a entrar. Assim, era comum o recurso ao crédito bancário para suportar os trabalhos, e quando os bancos, por algum motivo, suspendiam o crédito, a obra parava.

A venda em projeto surgiu pois como resposta dos construtores à imprevisibilidade do crédito bancário: a venda de um ou dois andares, ainda com o edifício apenas em projeto, cobria grande parte das despesas com a construção que a empresa iria ter nos próximos meses e permitia, portanto, prescindir do dinheiro do banco, que além de incerto era caro.

No entanto, esta adaptação dos construtores às dificuldades de financiamento abriu a porta a um esquema de extorsão: um chico-esperto comprava o andar do R/C ou primeiro andar, e mal a casa ficasse pronta punha lá a viver uma família de ciganos. Porque é que era sempre uma família de ciganos e não de minhotos ou timorenses deslocados não sabemos, mas esperamos que algum dia um sociólogo dê uma explicação plausível para o fenómeno. Por algum motivo, que também nos escapa, a partir desse momento deixava de haver interessados em comprar as restantes frações do prédio.

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Era então a altura de o chico-esperto ir ter com o empreiteiro e propor-lhe a recompra do andar por um valor entre duas a três vezes o inicial. A chantagem funcionava quase sempre. No entanto, levou a uma nova adaptação: à medida que o esquema se tornou conhecido os construtores passaram a adotar diversas estratégias que os protegiam: vender primeiro os andares superiores, por cláusulas contratuais que atrasavam a entrega da casa ou só começar a construção quando já tivessem vendido tudo.

Este episódio da nossa vida coletiva não tem interesse meramente académico, mas pode sugerir a resolução para uma das maiores chagas sociais de hoje: o turismo e a compra de andares em Lisboa por alóctones endinheirados. Os seus efeitos deletérios são sobejamente conhecidos: menos casas e mais hotéis, menos habitação degradada e mais requalificada, mais tuk-tuks e mais pândega até altas horas, mais emprego e mais rendimento para os autóctones, especialmente para corja mais jovem.

Que efeito teria nesta chaga social uma alteração radical das nossas políticas de reinserção social? Se passássemos a receber, de braços abertos, no centro de Lisboa as nossas minorias étnicas, em vez de as esconder dos olhos dos lisboetas burgueses, arrumando-as em bairros sociais e nas periferias urbanas? Tal como nos anos 70 o Estado alojou, em hotéis e andares devolutos no centro da cidade, os retornados, também agora poderia trazer essas famílias para o centro de Lisboa, para os hotéis na Avenida e para os prédios devolutos em Alfama e Bairro Alto.

Não será que com políticas socialmente mais inclusivas a estranja não nos devolveria a capital? Ou será que, ainda antes que os turistas deixem de vir, os lisboetas fogem todos para Loures?