Foi assim que o Tribunal Constitucional espanhol decidiu que a iniciativa de convocação de um referendo versando sobre a independência da Catalunha viola a constituição espanhola: “[s]i en ordenamiento constitucional solo el Pueblo español es soberano, y lo es de manera exclusiva e indivisible, a ningún otro sujeto u órgano del Estado o a ninguna fracción de ese Pueblo puede un poder público atribuirle la cualidad de soberano”. Ou seja, o reconhecimento ao povo da Catalunha da qualidade de soberano pressuporia comprometer a unidade indissolúvel da nação espanhola, fundamento da constituição nacional.

Muito se pode dizer acerca de uma visão da soberania nacional que menoriza ou desconsidera o direito a decidir dos povos regionais. Certo é que, inconstitucional ou não, o processo em torno de uma eventual secessão espanhola assumiu, nos últimos tempos, contornos preocupantes do ponto de vista das conquistas do Estado de Direito.

No contexto europeu, o potencial desmembramento de um Estado-Membro não é situação única. A existência de diversas comunidades políticas no seio dos Estados europeus está longe de ser uma originalidade espanhola, e não existem garantias de que movimentos semelhantes não venham a ocorrer em outros países. Ora, como pode e deve a Europa posicionar-se perante as exigências de autonomia dos povos que desafiam a unidade e integridade dos Estados-Membros nos quais ela se baseia, quando a União admite o seu próprio desmembramento?

Coincidências à parte, a recusa do Governo de Madrid, sindicada pelo Tribunal Constitucional espanhol, em admitir a possibilidade de saída da Catalunha contrasta justamente com o processo de retirada do Reino Unido da União Europeia. Dir-se-á que se trata de situações diferentes. A desvinculação de uma organização internacional não é equiparável à secessão de um Estado unitário (ainda que regionalizado). Na União, a possibilidade de saída encontra-se constitucionalmente prevista, ao passo que em Espanha essa possibilidade não existe como tal.

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Importa, contudo, não esquecer que o reconhecimento de um “direito de saída” não depende necessariamente da natureza estatal de uma determinada comunidade política. Se nos Estados Unidos da América – onde o Supremo Tribunal federal afirma também a natureza completa, perpétua e indissolúvel da união entre os Estados ‑, a questão da secessão acabou em guerra civil, mais recentemente, no Canadá, o Supremo Tribunal reconheceu a possibilidade de saída do Québec.

O que parece incontornável, em todo o caso, é perceber como, independentemente de um reconhecimento constitucional expresso, um Estado dito “de Direito” pode ignorar a vontade democrática de uma maioria regional. Certo que não se pode aceitar que essa alegada vontade maioritária regional se imponha de forma unilateral e incondicional à vontade unitária da maioria nacional. São duas maiorias em conflito e em democracia vale a vontade da maioria. A chave do problema tem, pois, de ser encontrada das dialécticas próprias dos Estados de Direito, passando por um caminho negociado, percorrido conjuntamente, onde as duas partes tenham uma palavra a dizer.

Neste processo, qualquer que venha a ser a solução concretamente encontrada, importa não perder de vista duas ideias fundamentais. Em primeiro lugar, nos termos dos Tratados, não só a União Europeia respeita a identidade nacional ‑ reflectida nas estruturas políticas e constitucionais fundamentais de cada um dos Estados-Membros, incluindo a sua autonomia local e regional ‑ como também o alargamento da União depende da vontade unânime dos Estados actuais. Ora, isto milita contra a possibilidade de a Catalunha se tornar Estado-Membro da União num cenário de secessão “forçada”: quer por força da resistência das instituições europeias ou dos demais Estados, quer, naturalmente, por força do veto espanhol com o qual inevitavelmente contará. Em segundo lugar, dentro ou fora dos Estados e da União, os povos europeus estão condenados a viver uns com os outros. Lincoln afirmava-o com clareza no século XIX: “[p]hysically speaking, we cannot separate. We cannot remove our respective sections from each other nor build an impassable wall between them. A husband and wife may be divorced and go out of the presence and beyond the reach of each other; but the different parts of our country cannot do this”. No mundo em que vivemos, a vizinhança física acarreta uma inevitável interdependência em assuntos vitais para qualquer comunidade (economia, segurança, etc). A solução que venha, por isso, a ser encontrada ‑ no contexto de um processo que não pode deixar de ser democraticamente vinculado ‑, não pode esquecer essa inescapável simbiose que o mundo moderno nos impõe.

Professora da Faculdade de Direito da Universidade Católica, advogada na Campos Ferreira, Sá Carneiro & Associados