A recente decisão do Tribunal Superior britânico, sentenciando que o Brexit só pode ser accionado por uma deliberação do Parlamento, apesar do resultado do referendo (a que o tribunal não reconhece valor político-jurídico), tem consequências que transcendem a matéria em causa.

É certo que o assunto ainda não está encerrado, porque o governo já anunciou que irá recorrer da sentença. Mas, se tiver de apostar, aposto que esta sentença será confirmada (sob pena de se operar uma profunda revisão constitucional, à margem do Parlamento).

O que está em causa é um confronto entre a democracia directa – sem tradição política no mundo anglo-saxónico – e a democracia representativa – âncora da tradição democrática britânica. Foi, aliás, isso que escrevi para um grupo de amigos logo a seguir ao referendo, questionando se, quando chamados a intervir, os deputados iriam decidir pela sua consciência – caso em que o Brexit não aconteceria, porque a maioria dos deputados se revelara ser contra o mesmo – ou seguir o resultado, não vinculativo, da consulta popular.

É por isso surpreendente que, sem qualquer base constitucional para o efeito, todo o establishment político e mediático tenha assumido que o referendo – sem poder vinculativo – decidira a questão do Brexit. Talvez os ventos populistas que actualmente sopram sobre a política mundial ajudem a explicar o caminho seguido. Mas o que é certo é o resultado foi dado como facto consumado, o que, apesar da dúvida acima referida, acabei por também acatar e até escrevi, aqui, sobre as suas consequências.

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Ora bem, o que a sentença do tribunal veio agora esclarecer é que a decisão sobre o Brexit terá que respeitar o “due process” de uma democracia representativa e que, para poder valer, terá que ser tomada pelos legítimos representantes do povo, ou seja, o Parlamento. É por isso particularmente interessante a citação que a sentença faz do que em 1915 escreveu um dos mais reputados constitucionalistas ingleses: “os juízes não sabem nada sobre a vontade popular, excepto quando essa vontade é expressa numa decisão do Parlamento, e nunca aceitarão que a validade de uma lei seja questionada com a invocação de ter sido aprovada ou mantida em oposição à vontade dos eleitores”. (Aliás, vale a pena ler toda a sentença).

Por conseguinte, e a menos que, improvavelmente, a sentença venha a ser revogada, o confronto entre a democracia directa – representada pelo referendo – e a democracia representativa – representada pelo processo deliberativo do Parlamento – irá mesmo ter lugar. E sabendo-se que a maioria dos deputados eram contra o Brexit, vai ser interessante ver se, nesse confronto, vão ser fiéis às suas convicções, ou se vão submeter-se ao resultado do referendo.

Os deputados são eleitos numa base individual – isto é, em circunscrições de um deputado –, ainda que sob um programa partidário, o que lhes confere um elevado grau de autonomia e legitimidade própria. Por outro lado, os programas dos principais partidos representados no Parlamento não contemplam o Brexit, pelo que não será fácil impor uma espécie de disciplina de voto com base programática. Por outro lado ainda, e contra o que muitos têm argumentado, os deputados não têm nenhuma obrigação jurídica, ética ou política de respeitar o voto do referendo. Que, além do mais, não tem protecção constitucional.

A discricionariedade de um deputado só é limitada pela sua consciência e pelo conteúdo explícito da plataforma com que eventualmente se tenha proposto à eleição. Não tem mais nenhuma obrigação – moral ou política –, nem tem que se subordinar a eventuais manifestações de vontade do seu eleitorado, subsequentes à sua eleição. A aderência, ou não, a estas manifestações poderá ter influência na sua eventual reeleição, mas não constitui uma obrigação retroactiva.

A decisão judicial, a confirmar-se, deixa, pois, formalmente tudo em aberto, no que se refere ao Brexit. E, reminiscente da saga “Regresso ao Futuro”, este pode nunca ter sido aprovado.

O que acho destacável neste episódio não é o que vier a ser o seu resultado final, mesmo que este seja a recusa do Brexit (se os deputados votarem pelas suas convicções). Tanto mais que penso, como aqui escrevi, que o Brexit está mais alinhado com os interesses estratégicos do Reino Unido, dado o caminho da integração europeia, e que causará mais problemas à UE do que ao RU.

O que acho digno de registo e exaltação é que alguém se tenha sentido obrigado a lembrar que o R.U. é uma democracia representativa; que esta forma democrática, assente em instituições equilibrantes, com freios e contrapesos, é a que melhor resiste às ondas emocionais e melhor compatibiliza a democracia com a liberdade e a justiça; e que o respeito pelo devido processo deliberatório é fundamental para o seu bom funcionamento. Pois que, como escreveu Norberto Bobbio, “demasiada democracia pode matar a democracia”.

Num tempo cada vez mais dominado pelas emoções, acirradas por activistas desenfreados e de fácil desvio totalitário, é reconfortante ouvir a consciência da mais antiga democracia funcional contrapor-se à deriva populista.