“É inegável que o exercício de direitos pelos cidadãos pode hoje ocorrer também no contexto de redes sociais. Mas, neste novo cenário, surgem também novas ameaças e entraves ao exercício desses direitos. A democracia digital apresenta novos desafios ao exercício do poder político e será em torno das implicações que estes avanços poderão trazer que a conversa se irá desenvolver.”

Foi esta a sinopse relativa à Fnac Shaper Talk que moderei na última terça-feira, 16 de janeiro, na Fnac Chiado, onde debatemos, a propósito de algoritmos e fake news, como conseguirá o Direito regular novas realidades em constante evolução e como poderão conceitos clássicos adaptar-se a um mundo digital.

Desde abril de 2017 que os Global Shapers de Lisboa promovem debates mensais, em parceria com a FNAC, sempre na terceira terça-feira do mês, nos quais procuramos trazer à discussão temas relevantes para o nosso país e que não se limitem a repetir aquilo que já foi dito anteriormente. Entre os temas já debatidos no âmbito desta iniciativa, saliento, entre outros, o futuro da Educação, da Política, da Investigação Científica, do Trabalho ou da Igualdade. Debatermos “o futuro” destes temas não significa, como me parece evidente, que tenhamos qualquer pretensão de ditar verdades. Temos perfeita consciência de que não somos os mais conceituados especialistas nestas matérias e é também por isso que procuramos sempre assegurar a diversidade possível no painel, convidando especialistas e interessados em temas relevantes para a sociedade a virem debatê-los connosco e abrindo sempre espaço para dialogar com as pessoas presentes. Só explorando diferentes pontos de vista e ouvindo pessoas com percursos e conhecimentos distintos conseguimos sair do debate com mais ideias do que aquelas com que nele entrámos.

Redes sociais e liberdade de expressão

Voltando ao debate da passada terça-feira, de que forma poderão redes sociais e filtros-bolha estar relacionados com o regime democrático e o futuro da democracia?

Vejamos: encarando as redes sociais como uma nova pólis, palco de novas interações sociais (quantos de nós temos amigos no Facebook que nunca vimos na vida ou com quem só interagimos virtualmente?), também através das redes sociais podemos exercer direitos constitucionalmente configurados como “direitos fundamentais”. Pensemos, por exemplo, na liberdade de expressão. Contudo, esta nova pólis, surgindo como um novo palco para o exercício de direitos, arrasta também consigo um conjunto de limites a esses mesmos direitos (como não poderia, aliás, deixar de ser).

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Tal como o legislador não pode apaticamente ignorar que existem novas realidades que carecem de regulação e que colocam problemas jurídicos complexos, por exemplo, em sede de responsabilidade civil (veja-se o caso dos carros autónomos), também não pode ignorar que as colisões entre direitos de diferentes titulares ocorrem também no contexto das redes sociais e que é aí tão possível violar direitos de terceiros (pense-se, por exemplo, no direito à honra e bom nome) como em outros meios. Aliás, nas redes sociais, em que facilmente se consegue criar um perfil falso, é frequente serem feitos comentários, alguns deles até com relevância penal, que nunca existiriam caso a interação fosse frente-a-frente. O filtro que cada um impõe a si próprio nas interações sociais presenciais esbate-se no contexto das redes sociais e em alguns casos desaparece mesmo.

Faz todo o sentido, por isso, que empresas como o Facebook permitam aos seus utilizadores que denunciem páginas que reputem ofensivas ou, por exemplo, violadoras da propriedade intelectual do denunciante. Mas é aqui que reside o problema: é que estas denúncias, à partida legítimas, podem ser subvertidas e traduzirem, elas próprias, um limite à liberdade de expressão, legitimamente exercida por outro utilizador.

Vamos imaginar dois casos meramente hipotéticos: A é um fotógrafo que publica as suas fotografias numa página do Facebook. As fotografias são todas da sua autoria, não havendo qualquer violação de direitos de propriedade intelectual. Vamos agora imaginar que entre as fotografias há imagens de nudez, mas que todos os fotografados consentiram na publicação online dessas imagens. Sucede que um dia a página é bloqueada, fruto de várias denúncias invocando o carácter pornográfico das imagens em causa. Imaginemos um outro exemplo, também ele hipotético: por exemplo, uma página de humor que faz comentários de forma caricatural sobre a atualidade política e social, vestindo a pele de alguém de determinada orientação política.

Vamos imaginar que após várias denúncias concertadas, todas elas invocando o caráter ofensivo das sucessivas publicações desta página, a página é também bloqueada. O encerramento destas duas páginas, sob a aparência de uma restrição adequada ao direito à liberdade de expressão e à liberdade de criação artística dos autores – esses infames que teriam extravasado claramente os limites do aceitável, violando direitos de terceiros – transformou-se, ele próprio, numa arma abusiva de imposição por parte de terceiros do que pode ser expresso ou criado nas redes sociais.

Dir-me-ão: não há problema porque a denúncia tem de ser verificada e calibrada por alguém e só há bloqueio depois dessa confirmação. O problema é que o encerramento das páginas não é aferido mediante intervenção humana, mas sim através de um algoritmo. Consegue o algoritmo compreender as fronteiras entre arte e pornografia, entre ofensa e humor? Não. Por isso, nestes exemplos hipotéticos, sem intervenção humana não teria sido possível corrigir a falha e voltar a por as páginas acessíveis aos que as quisessem consultar. Resta dizer, como é evidente, que os exemplos não são académicos. Ocorreram em Portugal e ocorrem em todo o mundo, todos os dias.

A conciliação entre o respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos utilizadores das redes sociais e as pressões que advêm das ameaças e desafios que este novo cenário também coloca a estes direitos surge, assim, como um tema relevante a ter em conta no Estado de Direito democrático do século XXI.

Filtros-bolha e cidadania digital

Deixem que vos alerte ainda para outro dos temas que debatemos nesta última Fnac Shaper Talk e o seu impacto sobre o regime democrático: filtros-bolha. As redes sociais e os motores de busca permitem-nos hoje ter acesso a um manancial de informação muito maior do que até agora era possível. Conseguimos hoje em dia aceder, em escassos segundos, à informação que procuramos e esse potencial de acesso à informação permite-nos, querendo, ser cidadãos mais informados e conscientes da realidade política nacional e internacional.

Facilmente se consegue hoje comprovar a veracidade das afirmações feitas pelos titulares do poder político, acedendo a fact checks sobre as mesmas; os líderes políticos têm crescente participação em variadas redes sociais, onde partilham o seu dia-a-dia; um comentário menos feliz pode ser rapidamente disseminado e gerar consequências para o seu autor; as redes sociais permitem não só a responsabilidade democrática (accountability) dos governantes como, ainda, convocar rapidamente manifestações e protestos ou alertar a comunidade para discriminações ou violações de direitos.

Há quem designe este fenómeno como “democracia digital” ou “e-política”, a qual, sem substituir a democracia representativa, seria um seu complemento. Mas também aqui as ameaças são inúmeras: assim como as redes sociais permitem rapidamente divulgar informação e alertar para determinado problema, também poderão divulgar informação falsa ou “desinformação”, sem que os destinatários da mesma consigam aferir a sua veracidade, o que pode (também apenas hipoteticamente, é claro) ter um impacto determinante em cenários eleitorais; por outro lado, não temos todos acesso à mesma informação e podemos até estar a ser privados de informação relevante, porque um algoritmo qualquer escolhe por nós, com base alegadamente nas nossas preferências anteriores, aquilo que devemos ver ou, até, quem são os nossos amigos relevantes no Facebook.

Um algoritmo que, por hipótese, pode ser discriminatório, tendencioso e que pode até ter sido programado com determinado intuito. Com a consciência de que vivemos nesta bolha artificial, estamos em condições de afirmar que o futuro da democracia passa também pelas redes sociais mas não, certamente, que as redes sociais são o futuro da democracia.

Na última terça-feira, estes foram alguns dos tópicos abordados na Fnac Shaper Talk, sem certezas absolutas mas com interesse em debater ideias. Dia 20 de fevereiro voltamos, com novo tema.

Mariana Melo Egídio tem 31 anos e é assistente convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde se licenciou e está a concluir o doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas. É também docente em pós-graduações na área do Direito Público e autora de vários artigos em Direito Constitucional e Direito Administrativo. É actualmente assessora jurídica no gabinete do primeiro-ministro.

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.