O Profeta Phillipus – o senhor que n’A Estrela Misteriosa persegue Tintim avisando-o da catástrofe iminente – tirou os últimos dias para nos elucidar da nova razão do fim do mundo. Ou, pelo menos, da civilização ocidental como a conhecemos. A maléfica razão (tchan, tchan, tchan) é o grupo das aleivosas redes sociais. (Pensou em realidades insignificantes como o terrorismo ou o novo perigo de uma escalada nuclear? Que ingénuo.)

Em boa verdade, não foi o Profeta Phillipus. Foram pessoas respeitáveis que parecem brincar sonhadoramente com o mundo de Xi Jinping, assente na repressão e no policiamento dos conteúdos das redes sociais disponíveis aos chineses.

Claro que a utilização que as pessoas dão às redes sociais (que estas não são realidades etéreas com vontade própria) e as alterações e inovações que trazem às interações humanas devem ser estudadas, refletidas, avaliadas. Também percebo que jornalistas se questionem como integrar estas disrupções na profissão. Contudo, acho deliciosa certa visão das redes sociais. Parecem supor que não há hierarquias, como se a opinião do maluquinho sucedâneo de Phillipus fosse tão lida e considerada como a opinião do jornalista, do escritor, do académico com gravitas, do cronista de jornal, da celebridade televisiva, do artista, do político, do blogger conceituado (que nove vezes em dez escreve e pensa melhor que a horda de ex-políticos sensaborões, tão talentosos na escrita como eu a cantar – não queiram saber nem investigar –, que muitos jornais albergam).

Claro que todas as opiniões são iguais mas umas são mais iguais que outras. O problema vem de as opiniões mais iguais nem sempre estarem nas redes sociais. Além de corrermos o risco de, folheando ou visitando um jornal, lermos as mentiras descaradas da Senhora Embaixadora de Cuba (isto no mesmo dia em que o diretor do DN, onde foi perpetrada a ocorrência, em editorial proclamava a verdade como a linha de sobrevivência do jornalismo, o que, mesmo salvaguardando a diferença entre notícia e opinião, permite sorrisos) ou os enlevos com lixívia branqueadora de Francisco Louçã sobre Fidel Castro, só ameaças de tortura às minhas crianças me levariam a ler certos respeitáveis detentores de colunas de opinião. Já nas redes sociais, entre as pessoas que sigo, há muita opinião que respeito (e de que desfruto, porque não é de somenos escrever bem o que se pensa), mesmo quando está nos antípodas da minha.

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Mais confesso que acho hilariante a preocupação de jornalistas e comentadores (e políticos) com as falsidades que se propagam agora a propósito das redes sociais. É que (e espero não provocar problemas coronários em jornalistas mais sensíveis) notícias falsas – ou enviesadas, ou incompletas, ou ao serviço de interesses políticos e económicos – sempre houve. Quantas vezes as notícias e as reportagens são tentativas escancaradas de evangelizar os leitores politicamente ou segundo as posições do jornalista? Quantas vezes os factos apresentados numa notícia são apenas parciais, silenciando-se os factos que dariam uma perspetiva mais completa mas mais ambígua ou contraditória, meticulosamente escolhidos ou ignorados para dar a ideia enviesada que o jornalista (ou o jornal) pretende?

Verdade: em cada notícia não se pode escrever a história toda desde o início dos tempos. E a realidade é fugaz e nem sempre possível de descobrir ou descrever, mesmo quando se tem as melhores intenções. E erros e distrações acontecem a todos. No entanto, se os factos escolhidos vão sempre no sentido de favorecer uma determinada visão da organização social, lamento, mas ou é assumida uma orientação editorial, e do jornalista, clara ou estamos perante uma fraude aos leitores. As fraudes quebram a confiança e a falta de confiança geralmente repele consumidores. Vai-se a ver, e é esta a grande causa da crise do jornalismo: vende-se distorção da realidade mascarada de isenção.

Também aqui as redes sociais são úteis: permitem-nos aferir, pelo que postam e tuitam descontraidamente, as reais motivações e opiniões dos jornalistas, e se conseguem (ou não) o exercício de isenção de apresentar ao leitor todos os factos, em vez de os escolher para doutrinar na sua visão do mundo.

Há outra razão para os jornalistas se acalmarem com a denúncia das notícias falsas: legitimam que seja tudo corrido a notícias falsas. Esta notícia do Observador, por exemplo, tem sido dada como falsa por muita gente nas redes sociais. Melania anda vestida, como é que podem dizer que ninguém a quer vestir? O facto de a notícia ser referente à tradicional aliança entre costureiros americanos e primeiras damas, com a cedência de vestidos exclusivos a preços simbólicos para os eventos oficiais (nem todas as primeiras damas têm dinheiro para comprar incontáveis vestidos de milhares de dólares cada), com alguns vestidos terminando expostos no Museu Smithsonian como parte da história americana, e não à expulsão de Melania Trump das lojas da Madison Avenue (onde poderá continuar a comprar livremente), é indiferente porque, lá está, Melania não se tem apresentado nua, quod erat demonstrandum. (Não, o sectarismo ideológico que resulta em pessoas não saberem ler, ou desconversarem deliberadamente, também não surgiu com as redes sociais.)

Em suma: é certo, precisa-se espírito crítico para o que se lê nas redes sociais. Mais ou menos o mesmo espírito crítico que é necessário para ler notícias nos jornais. E opiniões. (Até a minha, vejam bem.) E nem cheguei a referir as fileirinhas apenas com homens que vários jornais apresentaram como a opinião relevante sobre 2017. (O i, em resposta, apresentou um grupo só de senhoras novas). Quem resiste a tal superioridade dos jornais? Não se vê logo que eu prefiro ler a opinião de Freitas do Amaral num jornal à de Carla Quevedo ou Sofia Afonso Ferreira nas redes sociais? É a correr.