Não me vou referir ao intolerável número de mortos dos incêndios deste Verão, nem ao sofrimento de milhares dos seus familiares e das vítimas do calamitoso abalo que sacudiu o país. Muito já se disse, outros mais competentes do que eu nessas matérias, deverão continuar a fazê-lo, não deixando que adormeçam nem as nossas consciências, nem a opinião pública.

Tentarei contribuir para as reflexões que forçosamente os mais próximos do sector serão forçados a produzir, empenhadamente, para que estas calamidades não se repitam, para que o país seja melhor no futuro, dando ao heróico povo que tantas provas deu e tanto merece, oportunidades e qualidade de vida bem diferentes das que muitos têm tido até agora. O problema, mais do que florestal, é um problema territorial. Resolvidos os mais imediatos problemas humanos, sociais e económicos, deparar-nos-emos com muito mais do que os “fogos florestais e as cinzas”. Enfrentaremos um tema nacional, de equilíbrio social, de coesão territorial, de ordenamento e gestão de um país onde quase três quartos do território e boa parte dos que os povoam, têm sido genericamente abandonados à sua pobreza e à sua sorte. A dimensão é assustadora, as soluções seguramente pluridisciplinares, de distintos graus temporais e de complexidade:

O Governo anunciou um conjunto de medidas, algumas das quais parecem ir no bom sentido, embora estejamos longe de perceber como, com quem e quando, a maior parte delas vai ser posta em prática. A rápida nomeação do Tiago Oliveira para chefiar a Unidade de Missão foi excelente. Mas uma óptima escolha não pode servir de tira-nódoas.

As propostas governamentais parecem apontar uma viragem para mais prevenção, o que é positivo e há décadas devia ter sido feito. É difícil, mesmo impossível, entender porquê algumas destas não foram propostas logo a seguir a Pedrogão. Só porque foi necessário organizar as vitórias nas autárquicas ou negociar o Orçamento do Estado? Diversas poderiam ter sido tomadas mesmo sem o parecer da Comissão Técnica Independente. Estavam enunciadas, pelo menos desde 2005. Diz o ditado que mais vale tarde que nunca embora, neste caso, tenham sido descomunais as perdas de vidas e de bens entretanto verificadas em consequência da espera.

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Vamos por partes, subindo gradualmente em dificuldade: que queremos a curto, médio e longo prazo? Que fazer nas áreas que ainda não arderam? E nas extensíssimas regiões cobertas de cinzas onde, em breve, pinheiros e matos vão pulular? Que território e modelo de desenvolvimento pretendemos?

A curto prazo.

1. O Pinhal do Rei. (provavelmente, é o que tem, tecnicamente, solução mais fácil).

O Pinhal de Leiria, que como escreveu Henrique Monteiro não era o eucaliptal de Leiria, ardeu quase inteiramente. A mata do Estado que durante toda a minha vida profissional ouvi como sendo considerada a jóia da coroa, onde fui levado na minha primeira viagem de estudo, onde aprendemos sobre os meandros da gestão das matas, com o Eng. Amaral o então Chefe da Circunscrição, silvicultor representativo do mais competente que houve então nessa nobre profissão a que mudaram o nome, onde com regentes, mestres e guardas florestais de grande competência demos os primeiros passos na medição e avaliação dos povoamentos, está agora reduzida a pouco. Porém a sua reconstrução, embora leve décadas, é na sua essência um problema silvícola. Mesmo assim, como escreveu recentemente o colega Victor Louro: “Impõe-se respeitar as disposições em vigor sobre utilização de sementes e qualidade das plantas de viveiro, sob pena de se avançar para floresta sem qualidade. Muitas das empresas sucumbiram ao continuado desinvestimento no sector e sucessivas alterações de políticas, especialmente na 1ª década do século – não escancaremos agora as portas aos estrangeiros que quererão socorrer-se da pretensa liberdade de mercado para nos impingirem os seus materiais florestais de reprodução (sementes e plantas). As sementes necessárias não se importam: têm de ser colhidas cá! O nosso pinhal bravo certificado para colheita de sementes é do melhor que há no mundo. As quantidades de sementes que vão ser necessárias e a diminuição drástica das áreas de recolha exigem a maior parcimónia e eficiência na utilização dos stocks.

Isto no que apenas diz respeito ao começo, à colheita de sementes, à construção dos viveiros (os antigos estão desfeitos ou quase desactivados…), às sementeiras, às plantações, à defesa das dunas, ao planeamento na utilização dos talhões, por aí fora. Problemas complexos de silvicultura para os quais esperemos que haja nos serviços do Estado colegas à altura de os resolver com o conhecimento, o empenho e saber dos nossos antecessores e que disponham dos meios necessários para o efeito. Trata-se, porém, de um problema dominantemente, ou quase exclusivamente, florestal.

2 – O excesso de ignições, em maior número que no resto dos países vizinhos tem soluções, a curto/médio prazo. Como reduzi-las?

a) Em meio urbano: educando e informando sobre as causas dos incêndios, sobre como combater a negligência, como preservar os valores naturais das nossas matas e da biodiversidade que as envolve. Será fácil fazer programas escolares eficazes, sensibilizando e informando correctamente as crianças, algumas das quais influenciarão positivamente os seus familiares. Será possível organizar actividades em que alunos e professores sejam ensinados a avaliar o risco de incêndio na envolvente das suas escolas ou nos seus concelhos. E muito mais…

É com certeza possível mobilizar as televisões para introduzirem nos telejornais, nas telenovelas, nos concursos, nas festas de bailaricos e canções, informação, slogans, personalidades populares e imagens que sensibilizem o público, levando a maior cuidado com as beatas, os churrascos, as fogueiras, os foguetes, as soldagens, etc.

E porque não uma “forest fires web summit” ou TEDx?

Os boletins do Euromilhões ou Raspadinha, as máquinas de Multibanco, poderão conter avisos e chamadas de atenção para épocas e comportamentos perigosos de uso do fogo…

b) Em meio rural: Já não será tão fácil que quem manda, consiga entender agricultores e pastores e determine que mais importante do que multá-los é ajudá-los, identificando quem precisa de fazer queimadas, aconselhando-os a quando as devem fazer e ajudando-os, se necessário for, nessas acções. Que podem ser aproveitadas para dar formação e treinar bombeiros.

É evidente que também é indispensável punir os que agem de forma verdadeiramente criminosa, mas considerar todos os fogos postos por incendiários, iliba responsabilidades e em nada contribui para resolver o problema.

3. A redução de combustíveis nas zonas críticas é possível a curto e a médio prazo.

Existem entidades e serviços capazes de produzir cartografia de risco de incêndio. As autarquias. têm hoje gabinetes florestais, sapadores, bombeiros e poderão em colaboração com associações e empresas florestais, ZIFs, populações e proprietários, agir de imediato e antes do Verão na redução dos combustíveis nas zonas mais críticas, pelos métodos mais adequados, desde queimadas controladas à utilização de maquinaria, corta-matos, equipamento pesado (militar se for necessário e possível). Não será preciso ficar à espera de grandes relatórios para desenvolver tais acções.

4. A melhoria da vigilância também não será difícil e permite localizar os focos de incêndio à nascença, apagando-os antes que se torne impossível combatê-los. Pode intensificar-se o patrulhamento de vigilância com recurso à GNR, a patrulhas militares ou recorrendo a voluntários e associações civis que se têm revelado disponíveis.

5. Ter os postos de vigia operacionais e equipados é indispensável, antes do Verão, implantando novos se necessário for (os estudos estão feitos) e preparando vigilantes que possam garantir a permanência nesses postos sempre que a época e a situação meteorológica o aconselhe.

A médio ou mais longo prazo.

1. É fundamental-treinar e formar pessoal competente, para a prevenção e combate quer ao nível de comandos e chefias quer ao nível dos operacionais, como aliás é já referido nas recentes resoluções do Governo.

2. Será também muito importante criar ou melhorar, a nível do ensino técnico-profissional e universitário cursos ou graduações para especialistas na prevenção e combate dos incêndios rurais, assim como melhorar a formação dos bombeiros no combate aos fogos dando (a parte ou a todos) formação adequada ao combate dos incêndios rurais para mais eficácia do seu tão generoso, abnegado e arriscado esforço.

3. Criar um corpo de prevenção, com comando único, competente e estável, é essencial, como os especialistas vêm a dizer há mais de uma década e a Comissão Técnica Independente sublinha, tal como existe nos países onde o problema dos incêndios tem maior importância, (por exemplo, a Espanha). Exclusivamente dedicado à prevenção e ao combate, chefiado por pessoas com sabedoria actual sólida, com formação universitária adequada, competência no comando e tomada de decisões sobre um corpo operacional, em particular de sapadores florestais, devidamente formado e apetrechado. Para isso será necessário um forte querer político e capacidade para ultrapassar o poder de interesses habituais ou instalados.

Provavelmente vai tardar mais…

Posto isto, chegamos verdadeiramente ao cerne do problema sem cuja resolução muitas das ameaças se repetirão ciclicamente e as dolorosas perdas persistirão:

A mais médio ou longo prazo, que território queremos?

Que país querem os portugueses, não só aqueles que costumam decidir estas coisas ou legislam, mas sobretudo os que ocupam ou deverão vir a ocupar o território (sim, porque é essencial estimular gente nova a ocupá-lo) que desde há muito tem vindo a desertificar-se, com as consequências que podemos ver e o têm tornado tão vulnerável?

Sem que a sua ordem esteja hierarquizada, formulam-se a seguir algumas das muitas perguntas, que exigem respostas, muitas delas políticas, pluridisciplinares, ponderadas, reflectidas, sábias, talvez demoradas, quase todas motivadoras de um alargado debate que aqui não cabe, mas que é urgente iniciar:

  • Como incentivar os proprietários, estimulando-os a associarem-se e a reunir propriedades com dimensão suficiente para serem devidamente ordenadas e geridas? Quem as saberá e poderá gerir?
  • Que espaços deverão ser arborizados? Com que espécies?
  • Como estimular o pastoreio e o ordenamento cinegético nos montes?
  • Onde deverão conservar-se os matagais e como deverão gerir-se para que contribuam para enriquecer a biodiversidade?
  • Que áreas deverão ser destinadas à agricultura, sobretudo nos solos menos ricos, a culturas arbustivas ou arbóreas adaptadas ao nosso clima e menos exigentes em água?
  • Que áreas e que culturas para a agricultura mais intensiva?
  • Onde poderá ser consentida a construção de novas habitações ou mesmo o restauro das antigas?
  • Onde melhorar as condições para o turismo e as estruturas que o suportam?
  • Como estimular gente nova e qualificada a instalar-se e a desenvolver o interior? E onde?
  • Onde deverá incentivar-se a instalação de empresas, indústrias e serviços cuja economia seja estimulante e arraste ao aumento da população, consequentemente de instituições de ensino, de saúde, de cultura, de lazer e de recreio?
  • Como adaptar as soluções à tão rápida modernização a que assistimos, às profundas consequências dos avanços tecnológicos ou às mudanças climáticas?

Só sabendo qual o país que almejamos, (e não é fácil) conseguiremos saber que espaços rurais e urbanos realmente queremos, não esquecendo que as respostas a todas estas questões, muitas delas com cariz político, passam pelos interesses, vontade e capacidade das pessoas, das que lá vivem e das que estão distantes (mesmo que às vezes fisicamente próximas, as quais só com esforço, humildade e aprendizagem, entenderão a realidade do interior. As autoestradas e a visível melhoria das estradas facilitaram feliz e enormemente os contactos, por vezes, porém, sem ainda aproximarem as ideias).

Temos pela frente um desafio que abrange toda a sociedade, estimulante, mas ciclópico.

Engenheiro silvicultor