Alexandre O’Neill, talvez o poeta português que melhor pensou Portugal, propôs um dia que se traduzisse a palavra francesa dégonfler (literalmente: esvaziar) por desimportantizar. Sempre me pareceu uma sugestão muito útil e bem-vinda. Primeiro, porque vivemos num país de gente inchada de si. O inchaço toma um sem-número de formas, a começar pelo inchaço lírico, um mal de que padece um número vastíssimo de pessoas e que a visão, mesmo distraída, de um jornal televisivo mostra à evidência. Não há acontecimento, por mais insignificante que seja, que não convença o jornalista da imprescindível necessidade do recurso ao complemento lírico destinado à exibição dos bons sentimentos sem o qual a descrição dos factos parece não ter valor. E o inchaço lírico reduz substancialmente, como é óbvio, a objectividade da informação. Convém portanto desinchá-los, sugerindo que guardem a exibição da beleza moral dos seus espíritos, com ou sem mediação de juízos políticos, para os episódios mais privados das suas vidas. Desimportantizem-se, por favor.

Em segundo lugar, a desimportantização impõe-se na nossa esfera privada. É que o contacto frequente com o espectáculo da permanente auto-importantização, televisiva ou outra, tem o efeito perverso de provocar em nós momentos, mais ou menos duradouros, de irritação. E a irritação, sobretudo quando é duradoura, é, no fundo, um fenómeno de importantização. Acumular raivinhas indiscriminadas pela auto-importantização dos outros é meio caminho andado para nos importantizarmos a nós próprios. Quer dizer: é meio caminho andado para o pior. Portanto: desimportantizemo-nos, enquanto é tempo.

Dizer isto é fácil, eu sei. E levá-lo a cabo? Bom, é preciso começar sem esperanças excessivas. O objectivo não é, não pode ser, a obtenção de um estado de perfeita indiferença, que significaria o puro desinteresse pela sociedade. Era ir de mal a pior. Como dizia um sábio, isso é uma prerrogativa dos deuses e dos animais. Andamos, apesar de tudo, todos misturados, e são essas misturas que fazem de nós aquilo que somos, para o bem e para o mal. Desimportantizar não pode ser uma maneira de abolir a nossa relação, e a nossa reacção, aos outros. Primeiro, porque é impossível. Até os estilitas, sentados no topo das suas colunas no deserto, por mais bêbados de Deus que estivessem precisavam de gente que lhes levasse uns cestinhos com comida. Depois, mesmo que tal fosse possível, não parece uma atitude louvável por aí além. A solidariedade com a gente à nossa volta, e a preocupação com ela, é um velho princípio que é preciso guardar. O cinismo, na acepção corrente da palavra, não se recomenda. Que fazer?

Nisto, como em tudo, um exemplo prático ajuda. Tomemos o caso dos caraoqueiros. No karaoke, como se sabe, as pessoas colocam-se em frente a um ecrã de televisão e cantam, acompanhadas por música instrumental, canções mais ou menos conhecidas, cuja letra corre no ecrã. Não discuto o particular prazer que o exercício pode conceder. Noto apenas que o cultivo desta arte parece ter-se alargado a vastas esferas das relações sociais e é praticamente dominante nas discussões políticas. Cada um, por uma razão ou outra, adopta uma canção da sua preferência, e, a partir dela, começa a caraocar. O resultado é uma confusão tremenda onde não há lugar para o quer que seja de genuíno ou original. O que se ouve é uma pura repetição de algo que presumivelmente, na sua origem, comportava alguma novidade. Mas, na caraocagem geral, mesmo a mais ténue invenção desapareceu. O pensamento-karaoke, chamemos-lhe assim, funciona como obstáculo a que se procure entender o que se passa à nossa volta. Os caraoqueiros estão-se, de resto, nas tintas para isso. Só querem caraocar mais alto do que os outros.

Naturalmente, viver entre caraoqueiros que, com o tempo, adquirem a ilusão de serem os intérpretes originais, irrita um bocadinho. Repetem, repetem, repetem, como se tivessem eles mesmos escrito a canção, que passa a ouvir-se pela sociedade toda. O que dá aos caraoqueiros um profundo sentimento da sua importância. Até porque nada os demove da certeza da sua originalidade. Convém, por isso, tentar persuadi-los a desimportantizarem-se.

Mas voltamos ao problema anteriormente mencionado. Como fazê-lo sem, por nossa vez, nos importantizarmos a nós mesmos? Sem, por assim dizer, cairmos por nossa vez na caraocagem? Há talvez uma solução: procurar o original e ouvi-lo caladinho. A escuta pode assim tornar-se menos confusa e mais profícua. Não perfeita, é claro. Caraocamos todos sempre um pouco, isto é, fazemos sempre um pouco nossas as canções dos outros. Mas podemos , apesar de tudo, tentar ouvir o original e fazê-lo ouvir aos outros. E discuti-lo em busca de um entendimento comum. E isso permitirá talvez diminuir a berraria da caraocagem. Sem nos importantizarmos por nossa vez. Por mais precário e insuficiente que seja o método, ainda assim vale a pena. Evita-se a impostura sem cair no cinismo, o que não é pouco.

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