O dia amanheceu triste, pelo menos onde eu moro. Eu também acordei desalentado. Hoje, ao fim de quase duas semanas, não há bola. Os jogos têm sido emocionantes? Temos assistido a desempenhos individuais estratosféricos? Os golos têm sido do outro mundo? Salvo uma ou outra excepção, não, não e não. Mas o que é que isso interessa? Hoje não há bola e o adepto de sofá desanima, suspira, desespera. Fica por tudo. Um Irlanda do Norte-Eslováquia? Pode ser. Um Albânia-Áustria? Fechado. Um Liechtenstein-San Marino? Dois, para a mesa do canto, por favor. Nestas alturas de vazio futebolístico, nestes intervalos que são como uma punição ditada pelos deuses da bola, qualquer pratinho modesto teria o sabor de um manjar principesco. Lembra-me aquela anedota que Woody Allen conta no início de Annie Hall. Duas senhoras estão num restaurante e uma diz: “A comida aqui é péssima”. E a outra acrescenta: “Ainda por cima as doses são pequenas”. É isso que eu sinto em relação ao Campeonato da Europa. Às vezes a comida é péssima, mas as doses parecem-me sempre pequenas.

É uma sensação idêntica à do dia de descanso na Volta a Portugal, que eu, com onze anos, acompanhava pela rádio, normalmente a Renascença. Na altura, a Volta, a exemplo do Tour, da Vuelta e do Giro, durava três semanas, entre o final de Julho e o princípio de Agosto, época infernal (“a canícula alentejana” diziam os repórteres) para os ciclistas atravessarem a planície ou subirem as montanhas do Norte de Portugal. Depois de uma subida à Senhora da Graça, quando a estrada era mais estreita e esburacada, lembro-me de ouvir Manuel Cunha, creio, ciclista de óculinhos, a dizer que a meio sentira vontade de se lançar ribanceira abaixo, tal era o desespero provocado pelo esforço desumano. Eu tinha esperança de que, um dia, a nossa Volta fosse estrela do chamado “calendário velocipédico”, mas enquanto isso não acontecia, os duelos entre Joaquim Gomes e Cássio Freitas, a vitória de Fernando Carvalho na última etapa da prova de 1990, um muito jovem Delmino Pereira, os óculos moderníssimos de Orlando Rodrigues, as equipas da Recer-Boavista, da Sicasal-Acral e da Ruquita-Feirense, os sprints de Pedro Silva e Paulo Pinto, numa eterna luta pela camisola verde, eram para mim factos tão fantásticos como as maiores façanhas nos Alpes. Depois, lá reduziram a prova para uma semana e meia, a contarem com a promoção internacional. Só que esta nunca aconteceu, a prova definhou, o ciclismo perdeu prestígio e talvez o último ciclista português verdadeiramente popular tenha sido Vítor Gamito. É verdade que tivemos José Azevedo a brilhar no Tour, Sérgio Paulinho a conquistar uma medalha olímpica e Rui Costa a sagrar-se campeão do mundo. Porém, nenhum deles atingiu o patamar das lendas que nasceram nas rudimentares estradas portuguesas, nenhum foi idolatrado como Agostinho ou como o próprio Joaquim Gomes, que subia de mota e descia de patins, tantas foram as quedas que o impediram de ser ainda maior do que foi.

Enfim, esta longa digressão velocipédica serve para dizer que o dia de descanso na Volta, merecido e desejado pelos atletas, era um suplício para aquela criança cujo tédio das férias só era atenuado pelo ciclismo. Eram vinte e quatro horas que duravam um século, com a RTP a transmitir entrevistas com mecânicos e massagistas e eu a ressacar das imagens da estrada, dos pelotões compactos e das fugas inglórias, dos sprints suicidas e dos contra-relógios individuais, das dramáticas subidas à Torre e dos finais de consagração na Avenida da Liberdade. Dizem que no sábado regressa o campeonato da Europa e isso alegra-me. Aquelas Voltas é que nunca mais voltam, paradas num dia de descanso. Eterno descanso.

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