Dois livros recentemente traduzidos entre nós merecem atenta reflexão. Eles exprimem dois entendimentos opostos, mas claramente coexistentes entre nós, da civilização ocidental e dos deveres opostos que esses entendimentos implicam. É difícil exagerar a importância do que está em causa.

O primeiro livro é a edição portuguesa de Submissão, do francês Michel Houellebecq. É um livro certamente corajoso (e muito bem traduzido), que retrata duramente a imaginária futura rendição da França (e, com ela, da Europa) ao fundamentalismo islâmico. O mais incrível, à primeira vista, é que essa rendição será efectuada por via eleitoral: todos os partidos ‘respeitáveis’ (do centro-direita à extrema-esquerda) decidem apoiar uma candidato islâmico para derrotar a candidatura da Frente Nacional. No fim da história, a França docemente aceita a islamização — a começar pela Universidade de Paris-Sorbonne, onde o narrador lecciona.

Mas isto é apenas o mais incrível, à primeira vista. O que é tão, ou ainda mais, incrível é o retrato que o autor descreve da França antes da conversão ao islamismo. A França ‘burguesa’ que o autor retrata é uma terra de tédio, de ausência de sentido, em que as únicas fontes de gratificação residem na gastronomia e no sexo avulso. É essa (imaginária) França sem sentido mais fundo, essa França à deriva, que o autor descreve como vítima voluntária da Submissão.

Uma visão estimulantemente oposta do Ocidente ‘burguês’ é oferecida por um outro livro: A Hora Mais Negra: Como Churchill Salvou a Inglaterra, de Anthony McCarten. (O filme será estreado entre nós na próxima quinta-feira, 11 de Janeiro). Numa primeira leitura, o autor recorda a epopeia de Winston Churchill para salvar a Inglaterra e o Ocidente da pestilência nazi. Numa segunda leitura — sobretudo comparada com o tédio vazio do Ocidente descrito por Michel Houellebecq — o autor recorda-nos a elevação do Ocidente que Churchill soube defender.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Este Ocidente de Churchill não é definido por tédio e niilismo. Também (talvez por isso mesmo) não é definido por abstracções racionalistas sobre ‘espírito republicano’ ou ‘laicismo’. É definido, ou melhor é expresso, por uma tradição de modos de vida livres e pacíficos que não foram centralmente desenhados por ninguém — modos de vida que simplesmente têm sido usufruídos por pessoas livres e transmitidos espontaneamente de geração em geração. Nestes modos de vida, as pessoas sentem-se ‘em casa’. E, para defender a sua casa, as pessoas sabem (ou aprenderam a saber, ao longo de séculos) que têm de defender um regime politico fundado num governo limitado pela lei, que presta contas ao Parlamento nacional.

Não se trata de uma inovação moderna, muito menos pós-moderna. Remonta pelo menos à (cristã) Magna Carta de 1215. E foi expressa com rara beleza pelo primeiro-ministro William Pitt, no Parlamento britânico, em 1763 (antes da revolução americana de 1776 e da infeliz revolução francesa de 1789):

The poorest man may in his cottage bid defiance to all the force of the Crown. [The cottage] may be frail; its roof may shake; the wind may blow through it; the storms may enter, the rain may enter — but the King of England cannot enter; all his forces dare not cross the threshold of the ruined tenement!

Por este (aparentemente) prosaico motivo — porque a defesa da liberdade ocidental significa defender a ‘nossa casa sob a lei’ — Churchill foi capaz de mobilizar a língua inglesa para a guerra (como disse mais tarde o Presidente Kennedy) contra a pestilência nazi e, depois, para a guerra fria contra a pestilência bolchevique.

A escolha entre o tédio e a submissão, por um lado, e a honra e a resistência, por outro, está hoje de novo entre nós.

Vamos aceitar calados a escandalosa repressão do brutal regime teocrático iraniano sobre o seu próprio povo — que está a ocorrer sob os nossos olhos? Vamos aceitar calados a premeditada infiltração dos comunistas chineses nas nossas economias abertas — que está também a ocorrer flagrantemente sob os nossos olhos, como documenta a edição de 16 de Dezembro da revista The Economist? Vamos confundir as legítimas críticas ao Presidente Trump com o ataque à grande democracia americana e à crucial aliança atlântica? Vamos preferir calar as ameaças do fundamentalismo islâmico e da China comunista com discussões intermináveis sobre o ‘brexit’ e outras conversas vazias sobre ‘direitos dos transgénero’, a ‘correcta dieta alimentar’, ou o chamado ‘multiculturalismo’ e a culpa do ‘imperialismo ocidental’?

Os dois livros que citei revelam dois destinos possíveis para o Ocidente: o tédio e a submissão, por um lado; a honra e a resistência, por outro. A escolha cabe a cada um de nós.

PS: Um ano após a morte de Mário Soares, devemos voltar a prestar homenagem à sua dedicação à causa da liberdade e ao seu horror às ditaduras — de qualquer cor.