Quer perceber porque o seu médico não olha para si? Eu explico.

Sabe por quantos programas informáticos o seu processo clínico vai passar, simplesmente para ter uma consulta na sua unidade de saúde? 25! Sim, vinte e cinco programas informáticos que estão longe de estarem optimizados para articularem entre si.

Todo o nosso mundo está assente em programas informáticos. O que é bom. Facilita muito o trabalho de todos. Mas só facilita quando funcionam. No caso do SNS, muitas vezes não funcionam.

No dia-a-dia, uma unidade de saúde funciona da seguinte maneira: Quando o médico entra ao serviço coloca a sua impressão digital no programa SISQUAL, isto claro quando funciona, quando não funciona tem de telefonar para os serviços centrais para avisar que o médico chegou, mas que não pôde validar a sua presença. Todos os dias o médico tem de alterar o seu horário informaticamente porque as consultas atrasam e se sai mais tarde para o almoço, também volta mais tarde e tudo isso tem de estar justificado.

Depois chega o utente que faz a sua inscrição no KIOSKE, introduzindo manualmente o seu número do SNS. Filas de utentes se acumulam neste processo. Esse programa está ligado ao SINUS que actualiza diariamente os dados no registo nacional de utentes, RNU.

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Quando o utente está inscrito, dirige-se à enfermeira que, através do sistema SAPE, faz os seus registos clínicos, regista os fármacos no programa GRT, as vacinas no RCV. O administrativo verifica no sistema MARTA se o utente tem algum procedimento de enfermagem em dívida.

Quando o médico recebe a informação no seu próprio sistema, SCLINICO, de que o utente está inscrito e já observado pela equipa de enfermagem, faz a sua consulta. Se verificar que precisa de encaminhar o utente para outra especialidade utiliza o ALERT. Se precisar de obter informação sobre consultas hospitalares fá-lo através do PDS. Excepto as análises. Essas estão disponíveis no LAB. As ambulâncias são pedidas através do SGTD, as baixas médicas no CIT, as colpocitologias no SIIMA, os anticoagulantes são controlados no GOTA, os fármacos são prescritos no PEM. Se este não funcionar os médicos estão proibidos de prescrever manualmente. As doenças de declaração obrigatória são registadas no SINAVE, as reacções adversas medicamentosas no RAM e os atestados para as cartas de condução são elaborados no ACC. A consultas de estomatologias são pedidas pelo SISO e os cuidados continuados pelo RNCCI. A avaliação dos indicadores é feita através dos sistemas MIM@UF e SIARS. E finalmente as certidões de óbito são elaboradas no SICO.

Ficou cansado? Compreendo-o!

Esqueci-me de algum? É possível!

A maioria destes programas necessitam de passwords diferentes, têm bugs frequentes, perdem informações clínicas relevantes e são muito pouco user friendly.

Quando aumentam as queixas dos utentes relacionadas com o tempo que o médico passa a olhar para o ecrã em detrimento da consulta em si, numa altura em que se exigem cada vez mais e melhores resultados aos funcionários públicos nomeadamente aos médicos, quando se querem ganhos em saúde, quando se querem mais utentes observados (mas estaremos em alguma linha de montagem?), não seria melhor optimizar todas estas ferramentas, também para evitar o burnout dos médicos?

Não sei quanto custou a instalação de todos estes programas, nem sei quanto custa o aperfeiçoamento dos mesmos, mas existe alguém que está a ser seriamente prejudicado com tudo isto, e esse alguém é o utente.

Percebe agora porque o seu médico não olha para si? Sim, não tem desculpa, mas…

Felizmente conheço muitos colegas, que mesmo com todas estas dificuldades, continuam a considerar os utentes como prioridade, mesmo que não seja essa a sensação do utente!

Entretanto, é possível que no tempo que gastou a ler este texto, mais algum programa tenha sido acrescentado e, portanto, este texto pode já estar desactualizado.

As minhas sinceras desculpas.

Médico