Imagine-se um centro de investigação universitário de um país árabe simpaticamente financiado porque as entidades de supervisão e avaliação académicas o consideram de excelência. O centro reunia uma equipa de investigadores que, após aturado trabalho de campo em dois países da Europa Ocidental com segmentos da população definidos como marginalizados, concluía que os comportamentos criminosos desses indivíduos eram fundamentais para a transformação das realidades estudadas em prol da justiça social. Nessas e noutras sociedades da Europa Ocidental.

Os investimentos do estado árabe eram ainda recompensados pela publicação em livro dos resultados da investigação, conhecimento científico que passaria a ser partilhado pelas três sociedades envolvidas, árabe e europeias, e outras mais.

Esse não é um mundo meramente ficcional graças ao controlo, ao longo de décadas, de certos meios universitários pelas extremas-esquerdas. Não é necessário procurar longe.

O estado português, através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), financiou uma investigação sobre a delinquência juvenil nas cidades da Praia, em Cabo Verde, e de Bissau, na Guiné-Bissau. Dois estados soberanos. O trabalho foi da responsabilidade científica do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, dirigido por Boaventura de Sousa Santos. Contou com a participação dos investigadores José Manuel Pureza, Sílvia Roque, Kátia Cardoso, Redy Wilson Lima, Lorenzo I. Bordonaro, Marta Peça, Ulrich Schiefer e Joana Vasconcelos. Os resultados foram publicados, em 2012, no livro “Jovens e trajetórias de violências: os casos de Bissau e Praia” cujo conteúdo equivale ao retratado nos dois primeiros parágrafos.

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Uma vez que a investigação do CES atenta, no essencial, contra as mais elementares regras de construção do saber sobre as sociedades e contra os deveres cívicos, sociais, morais e de relações entre povos exigíveis às universidades publiquei uma análise crítica sobre o assunto vai para dois anos. A resposta tem sido o silêncio. No intervalo nunca faltaram protestos, em Portugal, contra os cortes ao financiamento à investigação universitária, protestos em muito alimentados pelos que passam ao largo dos reparos à mediocridade do que produzem.

Este tipo de relação com a crítica constitui um dos enigmas do enfeudado meio universitário “progressista”. Ou ignora ou, quando não pode, o sistema faz cair a crítica no esquecimento para seguir em frente inabalável, impante de convicções.

Há pouco mais de uma década foi elucidativo o episódio originado pelas apreciações fundadas do cientista António Manuel Baptista, publicadas em 2002 e 2004, contra a obra de Boaventura de Sousa Santos intitulada “Um discurso sobre as ciências”, originalmente publicada em 1987. De então para cá a última teve mais de uma dezena de reedições que serviram gerações e gerações de estudantes universitários formatadas pelo “obscurantismo e irresponsabilidade”, o subtítulo do primeiro dos textos de António Manuel Baptista.

O facto é que as críticas elaboradas por um académico ao qual não se conhece falta de rigor científico, mas estranho ao meio “progressista”, foram rapidamente votadas ao esquecimento. O livro visado seguiu de vento em popa nos meios universitários por mais de uma década com direito a mais umas quantas reedições apoiadas por milhões de euros de financiamentos públicos a investigações científicas por ele inspiradas. Uma das quais publicada em livro em 2012, tema deste texto.

No decurso da última década, os universitários que vão contactando com o génio de Boaventura de Sousa Santos não foram por norma incentivados a confrontar o texto original que projetou o seu mestre com a crítica dirigida ao mesmo por António Manuel Baptista para pensarem por eles mesmos. Um ambiente universitário paroquial que protege vícios intelectuais desta forma e natureza não é merecedor de grande respeito e muito menos de financiamentos públicos. Mas também uma sociedade indiferente a tais práticas está longe de ambicionar o melhor para si mesma.

Fazer ou não críticas a certos meios académicos, fundamentadas que sejam, resultam em nada. Se os governos se contam entre as entidades mais escrutinados nas nossas sociedades, e ainda assim podem ser nocivos, tal escrutínio é muitas vezes histericamente agitado para escamotear o papel bem mais nefasto de certos poderes instalados em universidades, sindicatos ou comunicação social, posto que sobre os últimos não incide um escrutínio social ou dos pares minimamente razoável.

O estudo do CES, pelo que representa, é merecedor de publicidade para que a mediocridade se anule a si mesma. De modo sistemático e deliberado, os investigadores académicos colocaram o foco das suas análises nos agressores criminais. Por aí não viriam males ao mundo se o resultado não fosse a descoberta de fundamentos científicos que permitem detetar em jovens delinquentes das cidades da Praia e de Bissau uma miríade de afro-românticos Che Guevaras suburbanos, a fonte da esperança da transformação futura para melhor daquelas sociedades. O estudo não se coíbe de recorrer depreciativamente ao conceito adjetivado de “paz liberal” (apenas “paz” não bastava), a paz social que supostamente domina e perverte as sociedades da atualidade, garantida à custa da opressão dos desfavorecidos e da força policial. Esta é a causa da “violência estrutural”, outro conceito adjetivado definido em rodapé na página 152 do livro.

De acordo com a visão científica em vigor no CES, esse tipo de paz social deve ser substituído por um outro. Desta feita os novos amanhãs que cantarão talvez espoletem em África e Coimbra será finalmente libertada de opressões liberais, neoliberais e de uma polícia opressora ao serviço dos ricos.

Nas diversas abordagens do estudo científico, as vítimas de crimes cometidos nas cidades da Praia e de Bissau são praticamente suprimidas enquanto objetos com interesse sociológico ou antropológico. É como se as graves consequências quotidianas da criminalidade nas sociedades africanas da atualidade fossem as mesmas que em Coimbra e arredores e como se o crime não fosse, ele mesmo, causador de pobreza.

De resto, no último meio século muitas sociedades africanas foram diligentes em gerar problemas mais do que suficientes para os próximos cem anos. Da explosão demográfica à segurança urbana; do saneamento urbano à distribuição da riqueza; da saúde à qualidade do ensino; da feitiçaria ao civismo; do emprego ao trânsito; do terrorismo às epidemias; do ambiente à simples estabilidade e previsibilidade da vida de todos os dias. Entre outros. Não quer dizer que África seja só isso. O que significa é que as indústrias ideológicas exportadoras das esquerdas europeias que viveram tempos de hiperprodução no último meio século – as principais correntes utópicas inspiradoras dos destinos pós-coloniais do continente e com as universidades como unidades de produção de excelência – bem que poderiam suspender a laboração por umas décadas. O “stock” acumulado não se esgotaria e talvez se poupassem as réstias de esperança que, apesar de tudo, os africanos sempre reinventam.

Depois de um manancial de atropelos às mais elementares regras de construção do saber sobre as sociedades, como o afastamento deliberado do esforço de neutralidade axiológica (leia-se Max Weber ou Georg Simmel) ou a denegação da orientação pela amoralidade ética (leia-se Sigmund Freud), Sílvia Roque e Kátia Cardoso são cristalinas no par de grandes conclusões da investigação científica em que participaram. Primeira, a ciência social do CES torna evidente a necessidade de “(…) enfrentar a progressiva e consequente deslegitimação e criminalização da violência” (p.295), isto é, a violência social e política é legítima, útil e desejável como atestam as evidências empíricas de Cabo Verde e da Guiné-Bissau. Segunda, importa “(…) repensar o significado e as possibilidades da resistência e recusar a estreiteza de definição do que pode ser considerado político (…)” (p.296), isto é, os pensamentos e as práticas políticas sem violência, mesmo nas democracias, não passam de manifestações menores ou cínicas, nem que para contrariá-las seja necessário glorificar a delinquência juvenil. Infere-se, portanto, que o CES legitima cientificamente o terrorismo.

Note-se a particularidade destas teses científicas de orgia da violência serem desenvolvidas no âmbito do Núcleo de Estudos para a Paz do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. A ficção de Orwell foi suplantada em rigor pelos cientistas sociais.

O centro de investigação de Boaventura de Sousa Santos e de José Manuel Pureza, e de outros, serve-se da ciência, transforma uma universidade pública em barriga de aluguer e utiliza o erário público destinado ao financiamento à investigação para legitimar, sofisticar e exportar a violência social e política. Na impossibilidade de fazer germinar tais barbaridades em Coimbra, empenha-se em exportá-las para Cabo Verde e Guiné-Bissau, como se estas e outras sociedades africanas necessitassem de mais convulsões e violências. Se esta atitude não constitui uma afronta da Universidade de Coimbra à inteligência mais comum e à vida quotidiana dos africanos, resta-me questionar a utilidade das independências.

O CES existe para provar a existência de relações de parentesco entre certas instituições universitárias e a instigação da violência social e política e da delinquência.

É para isso que servem as universidades? A Universidade de Coimbra não tem reitor? Serão legítimos e fiáveis os critérios que levam a FCT a considerar o CES um seu laboratório associado, isto é, um dos raros nichos de excelência científica em Portugal que lhe permite consumir avultados milhões de euros ano após ano? É assim que o governo português vem garantindo, promovendo e investindo na estabilidade da vida social, na qualidade das suas instituições e na melhoria das relações com outros estados soberanos? Os governos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau não têm nada a ver com o assunto?

Investigador