1) Os cancelamentos de voos da Ryanair estão a gerar notícias, umas atrás de outras, em que se usam argumentos e putativos factos nem sempre objetivos e muitos deles omissos do senso de gestão e mesmo do senso comum que é preciso ter nestas matérias. Afinal de contas, a Ryanair é uma empresa, como qualquer outra, e tem um problema, mas já lá vamos. Para já, estas dores são apenas de curto prazo (e é bom que assim se mantenham e terminem rápido). Ou seja, o sangue deve fazer-se rápido e estancar-se rápido. Afinal, as empresas e as marcas também se gerem em termos emocionais;

2) Depois: estas dores da Ryanair permitirão evitar sofrimentos operacionais e reputacionais futuros se se pensar que existe um problema real, que existe, sendo quase incontornável passar por uma crise (os media e o mundo digital em que vivemos opinam com grande força e tornam a crise de todos), em todo o caso a gerir, devendo-se comprimir o tempo da sua duração;

3) Em paralelo: Há muitos exemplos de crises ultrapassadas pelas empresas. E, tal como noutras crises, inclusive com tipologias diferentes (e alguns dirão mais graves) e para trazer a lume alguns exemplos passados, as baterias dos Samsungs ou o “dieselgate” que alguns vaticinaram que mataria a Volkswagen (que se tornou, entretanto, no primeiro construtor do mundo ainda no ano da crise!), a diferença está entre o pensamento de curto e a perspetiva empresarial de médio-longo prazo. Estes extremos são absolutamente decisivos e fundamentais de entender e perspetivar.

Os problemas de curto prazo afetam a cotação da ação, é certo, e criam dores localizadas e localizáveis no tempo a outros níveis (redes sociais, jornais, opinion makers, e por aí fora). Mas no final do dia e passada a crise será apenas ruído de curto prazo. Ultrapassada uma determinada dimensão ou fasquia em termos de brand awarness e market share global é difícil que as crises de algumas naturezas, como o caso desta, destruam uma empresa. Pelo contrário, normalmente as empresas emergem da crise ainda mais fortes;

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4) Mais ainda: Para apimentar as notícias existe o comum dos mortais que adora uma boa história com uma crise de uma marca notória e onde, e este é o caso, os haters se fazem ouvir bem mais, mais alto e mais depressa, que os lovers (como bem diz David Poole “We all love a good brand in crisis story, don’t we?”);

5) E a verdade? A verdade é que a Ryanair, muito mais do que esperaria inicialmente, começou a ser também usada como empresa para viagens de negócios (trabalho) e escapadelas muito curtas (curtíssimas) onde a pontualidade, o custo (traduzido em preço) e a segurança com que se apresentou inicialmente nesta aventura se tornaram ainda mais necessários. Com ênfase para o binómio pontualidade-custo dando a segurança como adquirida. Pode-se perdoar um atraso (mesmo se um bocadinho mais que ligeiro) quando se vai ou vem de férias (férias com algum tempo). Não se pode perdoar quando se usa a companhia em trabalho ou em escapadelas com tempo contadíssimo.

6) Mas vamos a factos: a Ryanair é a maior empresa europeia em número de passageiros. Ponto. Uma suposta redução de pilotos (e disponibilidades) e voos traduziu-se, na prática, numa operação com uma redução de alguma atividade (volume). Uma renegociação com os pilotos está igualmente em cima da mesa, por melhores condições e para conseguirem evitar trabalho em horas ditas de folga. Ainda assim, essa redução de atividade – seja porque motivo for – afetou diretamente, e para já, 400 000 passageiros mas teria de ser feita. Porquê? Porque a empresa está a enfrentar as consequências do sucesso e de um crescimento excessivo sem, no entanto, conseguir cumprir as premissas de base. O excessivo volume (atividade) tem destes senãos: deslizes consecutivos nos horários, excessiva diversidade de voos e rotas a par com pilotos esticados ao limite e insatisfeitos com as condições salariais e algum descomedimento de trabalho.

Para pôr cobro a esta situação tem de se cortar e fazer algum sangue: as empresas não conseguem viver com elevadíssimos volumes e ao mesmo tempo elevadíssima variedade de rotas e aeroportos (pode-se dominar a variedade quando se usa uma só máquina: um boeing 737; não se domina o território e as idiossincrasias das geografias e aeroportos muito diferentes quando se alargam muito as rotas, as origens, os destinos e os múltiplos horários – idas e vindas – que, em conjunto, trazem muitas complexidades associadas; não se consegue fazer o movimento de crescimento sem os pilotos ao lado da empresa porque há, aqui como noutros sectores, uma espécie de burocracia profissional que funciona com alguma lógica corporativa).

7) Qual é, então, o problema? O problema de fundo é um problema de operações – minha modesta opinião. É que em operações existe uma particularidade na gestão daquilo a que se designa por 4 V’s – volume, variedade, variação da procura e visibilidade – que não se tem conseguido ultrapassar. É que o volume funciona precisamente na razão inversa das demais dimensões e é bom não contrariar a lógica subjacente às operações para evitar problemas. Quando se tenta aumentar o volume ao mesmo tempo que se procura aumentar a variedade os problemas vão surgir (é uma questão de tempo). Pelo lado dos horários, não cumpridos, pelo lado dos pilotos, insatisfeitos, entre outros. Surgem pelo lado do mercado, procura, e pelo lado da organização, oferta. Comprometem-se assim as premissas de base.

8) E quais são as premissas de base da Ryanair? O mercado requer preços baixos, elevada fiabilidade (horários cumpridos) e serviços básicos pois o voo, ao contrário do que se passava há uns anos atrás, deixou de fazer parte da “experiência viagem” para ser apenas uma commodity que se tem de ter “no início, no meio e/ou no fim” dessa viagem.

9) E como se faz a reconciliação estratégica entre as premissas de base que, no fundo, são requisitos de mercado, com os recursos da operação? No caso da Ryanair a empresa respondeu, e bem, com serviço praticamente nulo (extras pagam-se à parte e a pedido); uma tecnologia para precisamente conseguir dominar a componente variedade nas várias dimensões e know-how facilmente passável para e entre pilotos (Boeing 737 e nem mais um avião), localizações aeroportuárias baratas (e normalmente usando aeroportos secundários, se for caso disso), e rotação rápida (os aviões querem-se no ar e não em terra; muitas viagens com o mesmo avião e, se possível, esticando ao máximo os mesmos pilotos para não elevar custos salariais; baixos CASM’s – Cost per Available Seat Mile). Tudo isto significa, na prática, que a Ryanair conseguia cumprir, e bem, com aquilo a que se tinha proposto. E vinha conseguindo. Esticando demais a operação…e este Verão demonstrou-o, tornou-se um pesadelo ao nível do cumprimento de horários e da incapacidade de tornar ainda mais elástica a organização (pilotos).

10) No final e em conclusão: este movimento de cancelamento era necessário (redução de atividade/volume, anulação de voos e renegociação com pilotos; estou convicto de que algum sangue mais ainda está por fazer: mais anulações – sangue do lado do mercado – e mais reivindicações – sangue pelo lado dos recursos internos). Mas estas são as consequências e não as causas. As causas são o volume excessivo e a variedade introduzida sem, pelo menos, acompanhar em recursos o que são os pedidos do mercado. Assim, sem querer aumentar os recursos internos a fórmula é baixar CASM’s para tornar a empresa mais e mais rentável. Volume e variedade são, porém, variáveis de sinal contrário e negá-lo é, como referido, arranjar problemas.

Isto dito, não embarquemos em histórias fáceis porque há-de haver um acordo com pilotos, rotas reestabelecidas, novos aviões colocados em operação e ainda mais volume. Aliás, este modelo de negócio tem tanto mais sentido quanto mais volume criar sem, não obstante, o abastardar com excesso de variedade ou esticando para lá dos limites os recursos internos. Em breve, porém, haverá novo crescimento. Por ora, os recursos internos esticados estavam a afetar a operação e a comprometer horários e cumprimento.

Mais, a Easyjet, que embora fosse um sério concorrente não o era ainda à dimensão da Ryanair. No entanto, passou de um player de menor dimensão, a procurar cumprir, a um player global, a cumprir: ao passar a jogar em rede, com o operador low cost de longo curso Norwegian Airlines, criou um novo terreno de jogo. Um novo tabuleiro de xadrez. Tudo junto, o problema de operações da Ryanair, visto pelo lado dos recursos internos e dos requisitos de mercado, mais ainda com os concorrentes a morderem os calcanhares, despoletaram a crise.

Numa das minhas aulas alguém me perguntava se a Ryanair ia acabar. Acabar, perguntei eu? Sim, acabar. Mas, e para mim é claro, não vai acabar. Na génese desta empresa e modelo de negócio está uma noção muito clara do que são as operações e do papel crítico que representam. E quem tem 400 Boeings 737 e mais 300 no pipeline não se vai atemorizar com todo este fuss. Porque não passa de temporário.

Pergunta: Está a pensar eliminar a Ryanair das suas escolhas para uma próxima viagem? Não, pois não? Se não, tudo isto é temporário. Se ainda assim não acredita que a Ryanair está para ficar então falemos daqui a um tempo. Como bem refere o seu motto – Ryanair: always getting better.

Disclaimer: o autor não tem qualquer investimento na Ryanair.

Professor Catedrático, NOVA SBE – NOVA School of Business and Economics, crespo.carvalho@novasbe.pt