O Festival da Canção da Eurovisão era daqueles concursos que ia perdendo cada vez mais qualidade artística, transformando-se, a pouco e pouco, num acontecimento de segunda ou terceira divisão no campo musical, mas a política trouxe-o novamente para as bocas do mundo.

Salvo raras excepções como o grupo Abba, praticamente ninguém se lembra da letra e música de uma canção que tivesse vencido nesse festival, mas, depois da queda da União Soviética, alguns países que dela fizeram parte transformaram esse espectáculo numa autêntica frente de combate político. As autoridades russas investiram milhões para alcançarem uma vitória e conseguiram-na há dois anos atrás, tendo esse acontecimento sido apresentado como mais uma prova do renascimento nacional.

Mas alguns países vizinhos não queriam ficar atrás, e a Ucrânia acabou por vencer no ano passado, o que fez com que esse país ficasse encarregado de organizar a competição este ano. Depois de muitas hesitações, provocadas pelas dificuldades económicas que a Ucrânia atravessa, os organizadores conseguiram arranjar meios para que ele se realize em Kiev.

Desde que se soube que o Festival da Canção iria realizar-se na Ucrânia, tornou-se evidente que ele se transformaria em mais uma frente de combate político e ideológico. Moscovo decidiu enviar Iúlia Samoilova, uma cantora com graves deficiências físicas que se move numa cadeira de rodas, para que a proibição ucraniana parecesse mais desumana aos olhos da opinião pública mundial. Porque os organizadores russos sabiam que as leis da Ucrânia a impedem de entrar nesse país.

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Depois da invasão da Crimeia pelas tropas russas em 2014, Kiev aprovou uma lei que proíbe qualquer cidadão estrangeiro de visitar território ucraniano se antes entrou, sem autorização dos órgãos competentes ucranianos, nessa península após a sua ocupação. Ora Iúlia Samoilova não só apoiou publicamente a anexação da Crimeia, como actuou aí em 2015.

Do ponto de vista jurídico, a razão está do lado da Ucrânia e se as autoridades de Kiev cedessem, certamente seriam alvo de crítica dos radicais ou até de acções que impedissem a realização do evento. Com uma situação política e social instável, o Serviço de Segurança da Ucrânia decidiu proibir a entrada da cantora russa no país durante três anos.

A posição da direcção da Eurovisão: “We have to respect the local laws of the host country, however we are deeply disappointed in this decision as we feel it goes against both the spirit of the Contest, and the notion of inclusivity that lies at the heart of its values”, não satisfez os russos, pelo contrário. O Kremlin, no meio de um coro de numerosas críticas à Eurovisão por permitir decisões “cínicas”, “tendenciosas” e “politizadas”, já fez saber que não irá enviar um substituto à competição e que Iúlia Samoilova irá representar a Rússia no mesmo festival em 2018.

Não obstante a Eurovisão frisar que continuará as tentativas para resolver o problema, os dirigentes russos tentam já fazer do conflito criado mais uma forma de propaganda de que o objectivo da Europa é isolar a Rússia, embora se saiba muito bem qual o “grau de prestígio” a que esse festival chegou e a sua influência na cultura europeia.

Numa competição artística em que participarão representantes de 43 países, Iúlia Samoilova deveria interpretar em inglês a canção Flame is Burning numa das meias-finais que se realizarão a 9 e 11 de Maio e, se passasse à final, actuaria no dia 13 no Centro Internacional de Exposições de Kiev.

Qual será o próximo palco de guerra entre a Rússia e a Ucrânia?