Não é exagero o reconhecimento mais ou menos generalizado de que a União Europeia (UE) vive a maior crise política da sua História. O risco de colapso do edifício europeu é real. O momento é excepcional e porventura requer ideias “fora da caixa” por parte de quem acredita que há melhor futuro num espaço político mais vasto que o das geografias nacionais. Este breve artigo oferece uma pequena contribuição neste sentido. Apela a um movimento federalizador na Europa. A ideia é polémica e tem sido tabu até agora em Portugal e na generalidade dos Estados-Membros (EM). Todavia, a força da realidade actual determina a necessidade de ponderarmos todas as opções, mesmo as que, à partida, possam parecer estranhas.

Do ponto de vista político, a União Europeia tem sido um espaço de cooperação entre EM. O desejo de assegurar a paz de modo duradouro no continente foi a principal motivação original para a construção europeia, motivação que o presente, às vezes, parece negligenciar. Foi necessária determinação política para, ao longo do caminho, os EM concretizarem fases sucessivas de integração económica, da pauta aduaneira comum à moeda única. A cooperação política foi adoptando matizes diferentes, desde a mera consulta mútua e troca de experiências em áreas de governação como a habitação e o ordenamento do território, passando pela partilha de responsabilidades em domínios como o ambiente e o desenvolvimento económico, evoluindo para a supervisão multilateral no caso da política orçamental, e chegando à aplicação de políticas comuns, ainda que com geografias variáveis, como sucedeu na agricultura, nas pescas e na moeda. Porém, mesmo no caso das políticas comuns, sendo certo que a iniciativa e a execução foram confiadas a entidades comuns — Comissão Europeia (CE) e Banco Central Europeu (BCE) —, a palavra final coube sempre aos EM. As entidades europeias que gerem as políticas comuns não têm legitimidade política própria, obtida sobre o universo dos cidadãos a quem essas políticas se destinam, e os representantes dos EM derivam a sua legitimidade política dos eleitorados nacionais. Chegámos a um momento em que os ganhos da integração económica se esfumarão se não voltarmos a injetar integração política no edifício europeu.

Assim nos parece porque o mundo se foi tornando cada vez mais global e interdependente e os desafios colocados à Europa mais complexos e exigentes. Os últimos anos mostraram à saciedade problemas que afectam assimetricamente os EM. Dois exemplos apenas: migrações e crise das dívidas soberanas. Os fluxos migratórios em direcção à UE não impactam da mesma forma sobre todos os EM. Criaram pressões em territórios que são fonteira externa e pressões nos países mais procurados como destino final pelos imigrantes. Decisões tomadas unilateralmente por um EM causam efeitos noutros EM. Acresce ainda que os EM diferem nos desequilíbrios demográficos que têm à partida e na capacidade de absorção dos respectivos mercados de trabalho.

No caso das dívidas soberanas, tornou-se um facto o risco de contaminação através dos mercados financeiros. Já se sabia desde a negociação de Maastricht que dívidas públicas julgadas excessivas pelos credores, mesmo as de EM pequenos, poderiam desencadear consequências negativas para os demais, mas parece ter sido necessário esperar pela crise para esse ensinamento da teoria económica ser apreendido (ainda que talvez de modo incompleto). Quando às dívidas públicas se juntaram dívidas externas tornou-se também evidente que, com o mercado comum e a moeda única, as economias nacionais perderam instrumentos poderosos de estabilização macroeconómica, como a taxa de câmbio, a taxa de juro e o orçamento público. Pior, o esforço de ajustamento tornou-se assimétrico. Antigamente, a depreciação da moeda do país deficitário ajudava-o automaticamente a contrair a despesa agregada e o país superavitário a expandir a sua despesa, assim facilitando a reposição do equilíbrio na conta externa; com o euro, a pressão para corrigir passou a existir apenas para as regiões deficitárias, o que agrava inevitavelmente os custos sociais e políticos de quem nelas vive; emigração e empobrecimento são os factores espontâneos de ajustamento económico.

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Os acontecimentos dos últimos cinco anos vieram mostrar quanto o modelo de governação da UE se tornou desfasado da realidade económica e geoestratégica que o enquadra. O espaço de materialização de efeitos de vários problemas, como os acima ilustrados, é claramente transnacional mas o espaço de decisão política relevante permanece nacional. Surgiram desafios novos e a resposta política foi quase sempre reactiva, lenta e excessivamente tímida. As decisões políticas foram sendo tomadas dentro do quadro mental do “status quo”.

A UE não é federal e as respostas a problemas comuns são tomadas por agentes políticos que não estão mandatados democraticamente para decidir em nome do interesse comum. Neste arquétipo, em que os participantes nas reuniões do Conselho Europeu e do Conselho prestam contas aos respectivos eleitorados e nenhum ao eleitorado europeu, é evidente que as decisões sobre matérias de interesse comum são tomadas sob o prisma de vários interesses nacionais naturalmente diferentes quando estão em causa questões com impacto nacionalmente assimétrico.

Este modelo pode ter sido eficaz no passado mas está claramente ultrapassado. Muitas pessoas em muitos EM acham, e com razão, que há um défice democrático de representação nessas decisões. É verdade que as administrações da CE e do BCE não são eleitas mas também é verdade que há várias áreas de governação com externalidades inter-nações e que os cidadãos não têm como pedir responsabilidades a quem decide sobre os dilemas entre EM e interpreta o que é o interesse europeu. Esta crescente divergência entre o espaço dos problemas e o espaço das soluções, a não ser atalhada, levará, de facto, ao desmoronamento da construção europeia. Pode não ser realista preconizar um Governo federal para a Europa mas certamente ajudará a afastarmo-nos do abismo a consideração de algumas formas de partilha federal de soberania. A eficácia das políticas geradoras de efeitos transnacionais (“spillovers”) mais significativos poderá beneficiar da complementaridade sábia entre um mecanismo de decisão central legitimado pelo conjunto dos povos europeus e dois mecanismos de controlo também democraticamente legitimados: um inter-estatal paritário e um de representação nacional proporcional. Se for necessário para o consenso, esta abordagem é compatível com o progresso para uma UE que combine este modelo de governação envolvendo os EM interessados na comunitarização das políticas com efeitos mais transnacionais com um modelo de governação mais inter-estatal e parlamento europeu reforçado para as demais políticas e abrangendo todos os EM.

Professor de Economia na Universidade do Minho, Vogal Executivo do Conselho Superior do Conselho das Finanças Públicas e ex-secretário de Estado do Desenvolvimento Regional (2005-2009)