Marcelo é mediático. Toda a gente sabe. Toda a gente nota. Não é preciso testar, mas ligue a televisão, abra o jornal, ou clique ali em cima onde diz “Observador” e veja. Sim, ele também é um catavento. Mais do que isso, é um “catavento mediático”, conjunção de dois fatores originais que nunca se tinham cruzado com tanta propriedade e efeito num político. E é mau? Nem por isso. Às vezes é ótimo. Raras vezes uma referência depreciativa serviu tão bem para adjetivar o sucesso de um modelo protagonizado por um homem.

Pedro Passos Coelho queria excluir, em 2014, qualquer apoio a um candidato à Presidência da República que se parecesse a um “catavento mediático”. Ora sujeito daquilo, embora não assumido, era Marcelo. E Marcelo encaixou tão bem que simulou uma retirada indignada da corrida a Belém. Mediático, fê-lo na televisão. Catavento, percebeu a deslocação de uma corrente de ar favorável. Levantou um dedo, molhou-o na boca, percebeu de onde soprava o vento e candidatou-se. O resto da história é conhecido.

O sucesso de Marcelo, pelo menos até ao momento, explica-se por essa característica que sagazmente Passos Coelho lhe identificou. Rebelo de Sousa é tão mediático e popular que tudo o que diga tem um efeito intenso. Ele é popular porque é mediático e sabe usar o poder dos media para ser popular. Como os poderes constitucionais são limitados, sabe que acumulando popularidade aumenta autoridade para usar no momento que for necessário. Como num jogo de vídeo, o jogador vai acumulando energia para aplicar sobre o adversário no minuto certo, mesmo que depois volte a ficar exangue e tenha de recomeçar da base um processo de recuperação. Será perante a primeira grande crise que enfrentar, quando Marcelo tiver de transformar o soft power da sua popularidade em hard power, que vamos saber o que verdadeiramente vale e até que ponto conseguirá depois recuperar. Mas isto é uma constatação: a popularidade dá-lhe autoridade e influência.

A componente mais sofisticada, porém, é a do catavento.

Não há muitos assim. Marcelo é o político no ativo com maior experiência de vida, cultura e memória política. A política estava com ele no berço. Viveu tudo: o fascismo por dentro, o nascimento do PPD por dentro, o PREC por dentro, tudo o resto por dentro enquanto diretor de jornais e actor-participante-observador-comentador. Ele não é a “gelatina política” que um dia lhe chamaram quando era líder do PSD. Não tem sido diletante. É esse conhecimento da história e das pessoas, misturado com intuição, informação, inteligência, intriga e uma certa malícia, que o tornam em catavento político perfeito.

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O “cataventismo” presidencial processa-se assim: Marcelo sabe coisas; apercebe-se de coisas; lê coisas no calendário, uma especialidade toda dele; toda a gente lhe conta coisas; e por isso, ele antecipa outras coisas. No fundo, percebe para que lado vai o vento. Foi essa leitura que treinou toda a vida. E isso é diferente de ir para onde o vento vai. Nada como adivinhar as tendências através da observação do voo das aves a partir do posto privilegiado que é o Palácio de Belém. Marcelo intui, antecipa o movimento dos outros jogadores e joga assim com eles, cooperando, ou por antecipação, posicionando-se. Em conversas reservadas. Ou com a sua agenda preenchidíssima. Ou através dos jornais e das televisões. Ou através de uma ou duas fugas de informação nos meios de comunicação social certos, sobre o que pensa o Presidente em caso disto ou daquilo, e está feita a profilaxia, sobretudo em relação ao Governo.

A estratégia não resultará sempre (como quando anunciou em falso que a administração da Caixa estava prestes a ser nomeada), mas tem dado alguns resultados (por exemplo quando avisou que nem pensar aceitava a mudança da lei para acomodar os administradores do banco público). Resta agora saber o que fará sobre a intenção do Governo permitir ao fisco aceder às contas com mais de 50 mil euros. Já disse que vetava. O Governo avançou. Vamos ver se veta.

Marcelo também era o criador de factos políticos, lembra-se? Exímio, diabólico, terrível. Ele agora é o facto político. Todos os dias, duas vezes por dia, três vezes por dia, o Presidente aparece. Cria situações novas: vai à Assembleia sem se importar com o protocolo, põe Hollande a condecorar a concierge portuguesa, leva o presidente do BCE, Mario Draghi, ao Conselho de Estado, inova sem ter medo da sua própria sombra. Não tem vergonha de insistir em apelos a que já ninguém liga (os consensos, por exemplo).

Na forma — e o processo em democracia é quase tudo — este fundador do PPD é a verdadeira antítese de Cavaco Silva. Talvez seja mais anti-Cavaco do que alguns adversários na campanha de janeiro. Não deixa de ser curioso como dois homens do mesmo partido dão presidentes tão antagónicos.

Tendo em conta o que o antecessor fez à instituição presidencial nos últimos anos, os primeiros seis meses marcelistas só podem ser positivos. A história melosa dos “afetos” pode parecer estranha às elites, jornalistas e comentadores, mas tem uma base que costuma ser desvalorizada. Se na forma e no processo pode ser um mafarrico, Marcelo no conteúdo é sobretudo um católico. E esta dimensão não pode ser desvalorizada ou olhada com cinismo. O beijo gratuito, o andar entre os pobres, o consolo dos atingidos por catástrofes ou desgraças, um certo posicionamento quanto às injustiças que agrada à esquerda e à direita social, a visita aos doentes, um determinado humanismo personalista, as observações sobre o diploma das “barrigas de aluguer” são tudo aspetos do Marcelo-católico. Ou tão só e apenas este pequeno facto: o aperto de mão público a José Sócrates, que António Costa não deu quando o convidou para a inauguração do Túnel do Marão.

O novo Presidente conseguiu aproximar os políticos das pessoas ao apresentar um estilo oposto ao do Cavaco monástico, distante e cinzento, uma fórmula diferente do Sampaio preocupado, pessimista e indecifrável, ou afastada do Soares aristocrata republicano, burguês. A sua posição, vinda da direita, perante a “geringonça” de esquerda dá-lhe autoridade acrescida para quando for preciso dizer: o Presidente ajudou o Governo em tudo o que podia, portanto, o resultado desta crise política é da exclusiva responsabilidade dos protagonistas.

Marcelo reequilibrou o sistema constitucional. Com a nova fórmula de Governo, dizia-se há uns meses, o regime tornara-se ainda mais parlamentar do que já era. Porém, no primeiro semestre marcelista — uma primavera e um verão — Rebelo de Sousa recalibrou os pratos da balança. Ao ponto de alguns especialistas em Direito Constitucional já virem dizer que ele está a extravasar os seus poderes. Bottom line: afinal o sistema é mesmo semipresidencialista, e tem maior pendor presidencial com o ilusório poder suave de Marcelo do que com o (ainda mais ilusório) poder duro e formal de Cavaco — ao tentar usar uma autoridade que perdera. Resta saber quais são os limites de Marcelo, que continuará no melhor dos mundos enquanto tiver de conviver com Governos não maioritários.

Mais dia menos dia, Marcelo Rebelo de Sousa terá a sua crise, decerto mediática. Aí veremos para que lado o catavento aponta.