No rescaldo da primeira volta das perturbantes eleições presidenciais francesas de ontem, limito-me por agora a salientar dois aspectos:

Em primeiro lugar, os dois partidos centrais da democracia francesa — os Republicanos, ao centro-direita, e os Socialistas, ao centro-esquerda — ficaram em ruínas. Nenhum dos seus candidatos estará na segunda volta. Em conjunto, não terão alcançado 30% dos votos. Isto merece uma análise ponderada, pois terá necessariamente consequências muito sérias para a democracia em França. E deve ser olhado em perspectiva comparada com o que sucedeu no Reino Unido e nos EUA.

No Reino Unido, uma ruptura política radical — a decisão de sair da UE — não afectou a solidez dos partidos tradicionais. O partido político que associou essa decisão a uma revolta popular contra “o sistema” — o Ukip de Nigel Farage — tem hoje 7% nas sondagens e não detém neste momento nenhum deputado no Parlamento britânico (o único que tinha acabou de se demitir).

No caso dos EUA, a vitória presidencial de Donald Trump ocorreu em simultâneo com uma muito expressiva vitória dos candidatos republicanos nas duas Câmaras do Congresso e na maioria dos estados. Mas a candidatura de Donald Trump não recebera o apoio da maioria dos congressistas e governadores republicanos entretanto reeleitos. Isso significa que, à semelhança do que ocorrera no Reino Unido, uma ruptura política radical — a eleição de Trump — não conseguiu abalar os partidos tradicionais.

Em França, pelo contrário, não apenas um, mas os dois partidos centrais foram eclipsados. Simultaneamente, e este é o segundo aspecto que gostaria de sublinhar, o apagamento dos partidos centrais em França ocorreu numa campanha eleitoral dominada pelo sentimento nacional. Pelo menos oito, talvez mesmo nove, dos onze candidatos centraram a sua mensagem, de uma maneira ou de outra, na restauração da identidade e da soberania gaulesas.

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O fenómeno parece acompanhar o que terá sucedido noutros lugares: no referendo britânico de Junho passado, centrado na restauração da soberania do Parlamento nacional; na campanha de Donald Trump nos EUA; nas turbulentas eleições da Holanda em Março; e certamente também no discurso político crescentemente dominante em vários países da Europa central e oriental. Como interpretar este regresso do sentimento nacional ao núcleo das paixões políticas de democracias liberais desenvolvidas e abastadas?

Para iniciar a reflexão sobre esta pergunta crucial, recomendo vivamente a leitura da mais recente “Seymour Martin Lipset Lecture on Democracy in the World”, acabada de publicar na edição de Abril do Journal of Democracy. Ghia Nodia, um respeitado académico da Geórgia, desenvolve aí uma profunda e muito estimulante reflexão sobre a relação entre o sentimento nacional e a democracia.

O ponto de partida de Nodia é muito saudável: ele confronta as teorias dominantes sobre o chamado “nacionalismo” com os factos. Recorda, em primeiro lugar, que no século XIX o sentimento nacional esteve sobretudo associado ao crescimento da ideia de auto-governo democrático; em segundo lugar, que a resistência ao comunismo soviético esteve sempre associada ao sentimento nacional dos povos da Europa central e oriental; e, como referi acima, que o sentimento nacional parece estar de volta em democracias liberais tão desenvolvidas como o Reino Unido, os EUA, a Holanda e a França.

Os factos parecem por isso indicar uma séria dificuldade nas teorias dominantes sobre a obsolescência do Estado-nação e do sentimento nacional. De acordo com essas teorias, o Estado-nação estaria condenado a desaparecer, sobretudo devido à globalização e ao alegado atavismo do sentimento nacional. No entanto, as previsões dessas teorias parecem estar a ser refutadas pelos factos. Porquê?

Uma profunda razão filosófica, que não é possível discutir neste espaço, prende-se com o equívoco do Iluminismo continental. Ghia Nodia correctamente observa que houve vários Iluminismos, uns mais sóbrios do que outros. Mas, no continente europeu, foi sobretudo o Iluminismo francês (a que Karl Popper chamou de racionalismo dogmático) que perdurou. Esse racionalismo dogmático (por contraposição ao racionalismo crítico, de base céptica e experimental) acredita que sabe, sem saber que acredita. Aspira por isso a eliminar todas as tradições que não possam ser geometricamente demonstradas e a desenhar um mundo novo através da chamada engenharia social.

Para este racionalismo dogmático (a que F.A. Hayek também chamou “racionalismo construtivista”), o sentimento nacional é certamente uma das expressões primordiais (a par da religião) de tradições que não podem ser demonstradas geometricamente. Isto explica por que motivo o racionalismo dogmático gera uma profunda hostilidade contra o sentimento nacional, bem como contra o sentimento religioso. Em contrapartida, essa hostilidade racionalista em regra produz uma reacção crispada dos sentimentos nacional e religioso — gerando aquilo que Tocqueville designou por “estéril conflito entre revolução e contra-revolução”.

Em segundo lugar, existe um erro mais prosaico na hostilidade do racionalismo dogmático contra o sentimento nacional: o racionalismo dogmático ignora o papel crucial do sentimento nacional na viabilização da democracia liberal (ou constitucional). Sem sentimento de pertença a um todo superior às partes — em regra, o todo nacional — não é possível auto-governo em liberdade: as minorias tenderão a não aceitar as vitórias eleitorais das maiorias; as maiorias tenderão a perseguir as minorias.

Por outras palavras, é em última análise o sentimento nacional partilhado que viabiliza o princípio demo-liberal do “governo da maioria, direitos das minorias.” Esta razão (que, como vimos, não é a única) seria suficiente para concluir que a democracia liberal não pode nem deve ignorar o sentimento nacional. Os partidos centrais da democracia francesa, agora seriamente enfraquecidos, fariam bem em reflectir sobre este tema.