Era um final de tarde, já noite, quando em época natalícia, talvez num sonho, uma família cruzou com o “Pai EMEL e as suas renas”. O progresso clonou esta simpática figura e o tradicional fato vermelho era agora substituído por muitas fardas azuis. As famílias também tinham os seus trenós e agora os “Pais EMEL” enfeitavam-nos com a sua bijutaria. Um brinco aqui, outro acolá e as prendas lá se iam distribuindo, a bem da organização que se propunha solucionar o parqueamento na cidade de Lisboa…

São 18.00 do dia 20 de dezembro. Em casa, alerto o meu filho mais velho para se preparar para a atividade desportiva que iria começar meia hora depois: “quando a mãe e o teu irmão chegarem, temos que ser rápidos para não nos atrasarmos.” Às 18.20 recebo uma chamada do meu filho mais novo: “Pai! Põe, por favor, o fato em cima da cama para ser só trocar e seguir que nós estamos quase a chegar.”

Ao toque da campainha seguiu-se a correria, de quem tem muita energia. A mãe chega logo a seguir, carregada com as compras, que a época e o espírito assim o exigem. Sempre se procura lembrar as pessoas próximas e fazer um esforço, rapando a conta, para dar mais um mimo de Natal. Ainda faziam o saco quando informei: “Vou descer. Despachem-se e vão ter comigo ao carro!”. Desço as escadas e deparo-me com o carro bloqueado pela EMEL. Fiquei atónito!

Estava estacionado, mesmo em frente à porta do prédio, em cima do passeio, que é bem largo, não impedindo a passagem de peões, nem prejudicando ou obstruindo quem quer que seja. Não existe um local de cargas e descargas, mas apesar da falta de opções para um simples ato quotidiano de efetuar uma descarga, a lei salvaguardar a atuação da EMEL. Senti uma profunda indignação e exaltação: Como foi possível num espaço de tempo tão curto? Tinham acabado de subir e eu desci quase de imediato. Não poderiam ter decorrido mais de 5 minutos entre o momento do estacionamento para subir com as compras e a minha apressada descida.

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Olhei à volta e nada vi. Tive um momento de incredibilidade! Dei uns passos em direções opostas, para abarcar todas as possibilidades e por entre as colunas, nas traseiras do prédio, avistei as fardas azuis. Estavam a rebocar um carro. Corri para eles. Questionei-os e respondem-me que não sabiam se o carro estava ali há muito tempo ou não… O carro, embrulhadinho na fita amarela ainda tinha o capô bem quente fruto da circulação no trânsito que nos fez atrasar. Os funcionários da EMEL, a carrinha dos bloqueadores e o reboque com uma viatura, já atrelada, estavam prestes a sair do local. Lembrei-me da técnica do “toca e foge” usada para as partidas de tocar às campainhas. Evoquei que tinha dístico de morador, que estacionei em frente à porta de casa para descarregar. Fui informado pelo funcionário da EMEL que deveria ter deixado os 4 piscas ligados “para sinalizar que não me demoraria”. A resposta surge da minha mulher que entretanto se apercebe e desce: “E o código prevê a sinalização de emergência para essa função?”.

Nada do que se pudesse dizer tinha qualquer efeito sobre a forma como pensavam e agiam. Seguros da legalidade da sua atuação incitaram-me a reclamar. Pelo tom se percebia que seria uma ação inútil. Pedi-lhes para se despacharem, que tinha mais que fazer. Apressaram-se a solicitar o Cartão de Cidadão, a Carta de Condução e a perguntar se pagava em dinheiro ou com Multibanco. Puxei dos três cartões e, embora o pagamento tenha sido feito de imediato, estive perto de 20 minutos à espera da necessária papelada.

E lá fui comentando que para bloquearem não precisam sequer de 5 minutos, mas para fazerem o resto demoram bem mais. O carro poderia ter saído de cima do passeio bem mais cedo se se limitassem a multar! E continuei a retorquir da vergonha do comportamento. “Mesmo com objetivos, vocês são novos, também têm família não se sujeitem a este papel. É um comportamento vergonhoso a forma como vocês atuam.” Juntaram-se entretanto mais funcionários da empresa a tentar perceber o que se tinha passado e os motivos da nossa indignação e a tentar justificar “a boa atuação que vão tendo em certos casos”.

Nesta estória para o Natal de 2017, poderíamos ficar por um relato triste de comportamentos, mas seria injusto considerar todos de igual forma. A correção com que dois dos funcionários da empresa, peões, se nos dirigiram tentando apaziguar, merece a nossa consideração. Estes, pedindo calma e bem mais dialogantes, não eram da equipa da joalharia que, de reação bem fria, se percebia que estava devidamente centrada em faturar e andar….

É interessante verificar como as nossas organizações tendem a atribuir mais poder aos que dele fazem pior uso. Sente-se cada vez mais a mão pesada, a inflexibilidade e a arrogância de quem tudo pode.

Entretanto foi-se contando a história e ouvindo os comentários: “É mesmo assim, já me aconteceu o mesmo. Quando veem alguém a estacionar mal e percebem que a pessoa está atarefada com qualquer assunto não se dirigem e advertem procurando evitar a situação. Esperam que a pessoa se afaste e vão a correr multar ou bloquear.”; “Vai ser horrível quando começarem a circular de noite. Agora vamos gerindo e tirando os carros de manhã cedo…”, “É uma perseguição. Tenho sempre medo de chegar para descarregar ou para ir buscar qualquer coisa a casa e ter uma surpresa dessas.”; “A carrinha com os bloqueadores que circula aqui na zona não atende a nada nem a ninguém. Só querem bloquear tudo o que podem”. A EMEL encarna a figura do odioso. Não tinha que ser assim, até porque os moradores de Lisboa têm consciência que o estacionamento tem que ser regulado.

Os relatos serão muitos já que a presença da EMEL é esmagadora. São mais visíveis que qualquer polícia. E as notícias prometem já para o próximo ano, um alargamento do horário de funcionamento para 24 horas diárias. Surge por isso a necessidade de reflexão e de percebermos o que está aqui em causa. O bloqueio sistemático de automóveis faz sentido? Se as viaturas mal estacionadas perturbam, o bloqueio só prolonga o tempo de incómodo para a circulação. Porque montou a EMEL um apurado sistema de bloqueios imediatos e sistemáticos? A multa, pelo menos numa punição de primeira linha não seria suficiente para dissuadir o estacionamento abusivo? Afinal quem é a EMEL e que interesses serve? Como contrata? Como forma? Quantos funcionários tem? Quanto fatura? Onde investe? Para quem são os lucros?

Pagar 98 euros pelo estacionamento indevido de uma viatura identificada com dístico de residente, numa zona residencial, durante cerca de cinco minutos para descarregar e sem que a viatura impedisse a circulação quer de automóveis quer de peões, num país onde o salário mínimo é de cerca de 500 euros pode ser legal, mas não é proporcional nem adequado e vai contra a moralidade e o bom senso. Sabemos que ao morar em Lisboa estamos a todo o momento sujeitos a situações destas. É desesperante e é sentido pelos moradores como violência institucional. É preocupante pensar que poderemos ter que viver com esta situação em períodos cada vez mais alargados. Os moradores vivem alarmados com esta perspetiva uma vez que os lugares “legais” são insuficientes e são obrigados a usar os passeios para estacionar, à noite, quando chegam a casa.

Embora a regulação do estacionamento seja fundamental, em Lisboa, a atuação das entidades responsáveis deve ser pedagógica, adequada e proporcional, tendo em conta o número de lugares existentes e o efetivo prejuízo de cada situação. Esta questão não pode ser entregue à exploração e ao lucro fácil.

Fica-nos o desatino e a lembrança de outros tempos em que se cantava “Eles comem tudo, Eles comem tudo e não deixam nada.” Conseguíamos perceber a quem se referia o pronome pessoal. E agora, noutros tempos, sabemos nós quem são “Eles”?

A EMEL é uma empresa da Câmara Municipal de Lisboa (seu único acionista). Os seus funcionários têm salários indexados à produtividade. Os proveitos dos bloqueamentos são chorudos. Assumem que criam lugares de estacionamento, embora se desconheça que construam edifícios para estacionamento, como o fazem, por exemplo, as grandes superfícies (parques subterrâneos ou em altura) ou em outras cidades europeias. Investem em tecnologia e em bicicletas. Dizem que existem para nos servir e para criar lugares aos residentes. Nota-se!

E assim se vive o Natal em Lisboa, trauteando, também, uma nova versão do “Jingle Bell”:

“Eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada.”