Um dos imbróglios, eles são muitos e variados, em que o nosso ministro da saúde está mergulhado e, por arrasto, todo o Governo, é o das reivindicações salariais dos profissionais de saúde. As mentiras, como a do “virar a página da austeridade”, muito repetida pelo Dr. António Costa, ou a da “nova esperança”, com que o ministro da Saúde se tentou descalçar da impossibilidade de não ser austero, serviram para alimentar expectativas a que os “geringonços” não podem responder. Penso que é claro, agora, que nunca puderam.

Durante o período do resgate, o tal que o Eng. Sócrates pediu e o Governo PSD-CDS teve de assumir, não haveria possibilidade de sustentar a função pública se não chegassem as fatias regulares do empréstimo que tinha sido solicitado. Para que cada uma dessas fatias fosse depositada em Portugal era preciso fazer prova de que estavam a ser cumpridas as metas, exatamente aquelas com que o Governo PS se tinha comprometido antes de ser clamorosamente derrotado nas urnas em 2011. Como parte do programa de ajustamento da despesa pública, o Estado foi obrigado a reduzir salários a uma parte dos funcionários públicos e, consolidando a redução do valor pago/hora, impôs o horário de 40h a toda a função pública. Como tal, seguindo o que já tinha sido feito na governação do PS, não foi possível apresentar aumentos salariais ou negociar carreiras.

Todavia, durante o período do “bail out” não houve despedimentos de funcionários públicos, sendo o setor da saúde aquele em que até houve ingressos sistemáticos de funcionários novos e não apenas médicos, mantiveram-se todos os pagamentos devidos nas unidades de saúde familiar (USF) – contra a posição espartana da interpretação do Tribunal de Contas que nos obrigou a rever a legislação –, não ficaram horas extraordinárias por pagar, pese embora o seu valor/hora tenha sido reduzido, repuseram-se concursos para assistente graduado e graduado sénior na carreira médica, lançaram-se concursos para contratação de enfermeiros e, com o apoio do Ministério das Finanças e de todo o Governo, definiram-se os salários a pagar na carreira de 40h dos médicos. Tratou-se da regularização de uma situação que estava pendente do Governo PS, o tal que trouxe a tróika, e que foi consolidada através de um acordo estabelecido com os sindicatos médicos.

Devo realçar o papel construtivo e positivo de todos os sindicatos dos profissionais da saúde que souberam compreender a situação de emergência financeira em que o País estava e, sem nunca abandonarem as suas lutas, aceitaram adiamentos e processos faseados. Os enfermeiros, seguramente detentores de grande capital de queixa, perceberam que a nossa intenção passava por remunerar melhor, em vez de reduzir horário, e foi esse o caminho que prosseguimos quando, após longas contas, iniciámos o processo de equiparação de 1º salário nos hospitais EPE ao dos enfermeiros na carreira do setor público administrativo. Outros profissionais, como os psicólogos, nutricionistas, farmacêuticos, técnicos de diagnóstico e terapêutica e técnicos de emergência tinham, após a saída limpa, diplomas de carreira já finalizados que apenas não foram aplicados mais cedo porque o Dr. António Costa ocupou o lugar de primeiro-ministro, com mérito político, e tudo adiou.

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É maçador ser repetitivo, mas quando se lida com forças que, na melhor tradição da esquerda totalitária, branqueiam o passado e alteram a história, é preciso estar sempre a recapitular.

Chegados a 2017, no meio de tanta esperança nova e tão boas notícias, saídos do lixo, é normal que os profissionais de saúde venham agora pedir aquilo a que acham que têm direito. Para já, ainda são só enfermeiros e médicos. Os outros, todos eles, virão fazer as suas exigências mal percebam que as prometidas carreiras não saem do papel em que estão impressas.

O Governo atual decidiu devolver os cortes salariais que afetavam os funcionários públicos mais bem pagos, logo no 1º ano, reverteu o horário das 40 para as 35h – não para todos, como alguns enfermeiros já sabem – e está em vias de pagar as horas extraordinárias de médicos e enfermeiros pelo valor pago em 2010. Ainda bem, havendo dinheiro para tudo isto.

Como contrapartida, não há investimento público, os equipamentos apodrecem, o ritmo de crescimento da rede de cuidados continuados abrandou, as dívidas a fornecedores crescem a um ritmo mais acelerado, a introdução de novos medicamentos está a ser progressivamente dificultada. São opções políticas que devem ser apreciadas de forma neutra e não são todas apenas erradas. O Governo tem feito bem em tentar contratar todos os médicos passíveis de serem contratados, como já era feito durante a tróika, e em contratar mais pessoal não médico. Convenhamos que sem pessoal não há tecnologia de saúde que funcione para minorar o sofrimento.

O problema está no desequilíbrio entre as expectativas salariais, que foram criadas e apenas parcialmente satisfeitas, e os outros compromissos de índole estrutural e tecnológica, nomeadamente a aquisição de medicamentos, que não são satisfeitos. O orçamento não chega para tudo e, agora que a realidade chegou ao Ministério da Saúde, percebe-se que a corda tinha sido esticada até ao limite e não há como acomodar mais aumentos salariais nem, provavelmente, contratar todo o pessoal ainda necessário.

Ninguém duvide de que os trabalhadores da saúde, incluindo enfermeiros e médicos, são mal pagos e pior ainda se forem feitas comparações internacionais de acordo com a paridade de poder de compra. E refiro-me a comparações antes de impostos que, em Portugal, sonegam quase metade dos salários que podem ser auferidos pelos trabalhadores mais diferenciados, atirando a sua remuneração mensal líquida para valores bem mais baixos, não fosse o trabalho extra, fora ou dentro do setor público, que todos acabam por ter de fazer. Vejamos as reivindicações.

Comecemos pelos enfermeiros. A carreira que os rege, não contemplando a designação de enfermeiros especialistas, foi negociada e acordada pelos sindicatos com a ministra Ana Jorge, a última do governo Sócrates. É uma má carreira e tem de ser renegociada.

É evidente que os enfermeiros especialistas devem ter uma remuneração melhor e consentânea com o seu grau de capacidade e responsabilidade. Da mesma forma que deve haver uma quota formativa anual para enfermeiros especialistas, em função das necessidades, cuja formação deve ser suportada pelo Estado. Mas, ao contrário do que tem acontecido, também por culpa dos enfermeiros diretores nas instituições, os especialistas devem ser colocados em lugares de chefia adequados à especialidade que têm. E, em boa verdade, os salários dos enfermeiros, para uma base semanal de 40h, têm de ser revistos com a maior brevidade possível.

O que não é aceitável é assistir-se a um ministro tentar negociar uma solução enganosa com o sindicato dos enfermeiros da CGTP (SEP), deixando os grevistas de fora, para depois dizer que conseguiu um acordo. O PCP está comprometido com o Governo e nunca se livrará disso, mas também não vale a pena julgar que eles são todos tolos. Entretanto, enfermeiros e médicos irão conseguir, com justiça, que o valor/hora do trabalho extraordinário seja reposto aos preços de 2010, embora só em 2018 e não em 2017 como o Governo tinha prometido. Esta era uma medida conjuntural da tróika que podia ser revertida. A mudança estrutural, a da diminuição da procura de serviços de urgência, ainda está para acontecer.

Aparentemente, os médicos pedem agora três coisas que são de índole salarial, mesmo que digam o contrário. Querem ter menos utentes nas listas dos médicos de família, querem menor obrigatoriedade de horas anuais totais de serviço de urgência e querem menos horas obrigatórias semanais de urgência.

Nos dois primeiros casos não há sustentação robusta para as pretensões. O aumento de número de utentes por médico não foi uma decisão conjuntural para durar durante a tróika. Foi uma contrapartida acordada para o aumento salarial que acompanhava a mudança de 35 para 40h nos cuidados de saúde primários, embora com as exceções previstas para as USF cujo regime remuneratório é muito mais favorável. Seria fastidioso estar aqui a analisar as limitações do estudo que o SIM apresentou, sustentando os benefícios de menos utentes/lista, mas a questão está toda enviesada quando ela se coloca no número de utentes e não no tipo de utentes, nas condições geográficas locais e nos resultados de saúde exigidos. Enfim, um trabalho longo pela frente e o ministro tem razão quando propõe soluções faseadas.

Menos horas extraordinárias obrigatórias anuais – são 200 atualmente – não deve ser exequível, nem desejável. Não nos esqueçamos que estamos confrontados com uma população médica envelhecida e que, felizmente, não é obrigada a fazer urgências depois dos 55 anos de idade, embora se fosse depois dos 56 também não viesse nenhum mal aos utentes. A redução de 18 para 12 horas semanais obrigatórias é perfeitamente aceitável, até porque esta medida foi claramente de intenção temporária.

Pedir redução de número de médicos formados em cada ano, uma reivindicação acessória, é que não tem mesmo razão de ser, por mais que nos queiram convencer do contrário. Os médicos deveriam estar a pedir que surja formação médica privada em Portugal, tal como acontece na generalidade dos países desenvolvidos. Dever-se-ia exigir mais qualidade nas nossas escolas médicas e de enfermagem e isso não se resolve reduzindo os alunos. Resolve-se com melhores professores e formas de ensino mais atuais, como a generalização dos centros de simulação, entre outras. Formar menos médicos, quando há a falta de especialistas que todos sentimos, existem atrasos crónicos em intervenções e exames complementares de diagnóstico, não seria fácil de explicar aos Portugueses.

Mas o Governo está com sorte. Os médicos poderiam e deveriam pedir mais. Felizmente para o Governo, os sindicatos médicos esquecem-se mais dos médicos dos hospitais do que dos cuidados primários. Para os primeiros ainda não há incentivos pela produção e apenas há compensação pela efetivação de mais trabalho extraordinário, daí que, em boa verdade, a questão da redução da obrigatoriedade de horas não se ponha quando esta é a única forma de completar, às vezes duplicar, o salário. Lembro que o descanso denominado de compensatório, as horas de “folga” após trabalho efetuado de madrugada ou em dias feriados e domingos, é feito em regime totalmente pago, sem necessidade de reposição de horário, com a concordância do atual ministro e contrariamente a parecer da PGR que considerou uma interpretação diferente do espírito da lei. Aqui houve uma cedência que tem impacto na disponibilidade na prestação de cuidados e que tem custado muito aos administradores hospitalares. Sabendo que, com não rara frequência, esse descanso é usado para compensar o que não foi feito na “privada”, teria sido bem melhor usar as negociações para pedir mais dias de férias, mais licenças para formação, benefícios fiscais na aquisição de material de estudo, remuneração adaptada ao risco e maior contagem de tempo de serviço com o cumprimento de horas penosas.

Os sindicatos deveriam estar a pugnar pela possibilidade de reposição do trabalho médico em exclusividade, criado num Governo PSD e eliminado pelo PS, para todos os médicos, embora seja essa a bitola com que se paga aos médicos das unidades de saúde familiar e mais nenhum outro. Também é obrigação dos sindicatos olharem para as progressões salariais e tornarem claro que as remunerações médicas tendem a diminuir, por via da não prestação de trabalho extraordinário, à medida que os médicos vão ficando mais velhos, sabedores e experientes. São os mais diferenciados que devem ser aumentados em primeiro lugar. São esses que têm mais a ganhar em abandonar os hospitais públicos e é preciso inverter essa tendência. Não se resolveu isso com a carreira das 40 horas por questões técnicas na definição de salários e na aplicação dos índices da função pública, o que lamento.

Seguramente que não será só por cobrar aos jovens especialistas uma propina de formação, ou uma multa por renúncia ao trabalho no SNS, que eles se sentirão mais motivados para continuarem como funcionários públicos. O mais importante será dar uma perspetiva de carreira onde, para lá de já terem um salário inicial superior ao dos outros licenciados em qualquer setor, público ou privado, saibam que há progressão salarial real com o avançar das competências e das responsabilidades.

Para qualquer Governo estas seriam as reivindicações difíceis de satisfazer, mas as mais justas. Até lá, não nos venham aldrabar com a ideia de que a abertura de concursos para progressão corresponde ao descongelamento de carreiras. São coisas muito diferentes. Se no tal “descongelamento” os médicos ficarem de fora, cá está um bom motivo para uma “ação industrial” como os nossos amigos do Brexit chamam às greves.

Ex-ministro da Saúde