É opinião quase geral que a melhor parte das nossas obras completas será tudo o que não dissemos, tudo o que não fizemos, e tudo o que não escrevemos. A opinião tem a sua razão de ser. No que dissemos há coisas demais: coisas que não quisemos dizer, ou que pelo menos não quisemos dizer daquele modo; no que fizemos há erros, exageros, maldades, e disparates; e do que escrevemos é melhor nem falar. Pelo contrário, o encanto daquilo que poderíamos ter dito, feito ou escrito é enorme. Temos caracteristicamente esperanças naquilo que não aconteceu: que ainda não aconteceu, ou que mais simplesmente nunca aconteceu.

Do ponto de vista logístico dizer qualquer coisa é mais simples que escrever ou fazer; não é apenas porque não pensamos muitas vezes no que dizemos: também não pensamos muitas vezes no que fazemos ou no que escrevemos. É porque já vimos equipados de fábrica com modos simples de dizer coisas. Pelo contrário, fazer exige normalmente deslocações e movimentos, e que se passe de um estado de repouso a um estado de actividade, e depois se volte ao estado de repouso. E escrever exige tudo o que fazer exige, e ainda instrumentos, e que se tenha previamente aprendido a escrever. Os requisitos logísticos para dizer coisas são muito menos complexos; quando os outros não nos percebem podemos sempre alegar o estilo oral ou um defeito na fala.

A expressão ‘espírito de escada’ descreve no entanto a consciência que temos das coisas extraordinárias que poderíamos ter dito se nos tivessem ocorrido a tempo; são as coisas de que nos lembramos ao descer a escada para sair do sítio em que as teríamos dito com propriedade. Ao descer a escada imaginamos a glória que não tivemos; ou a que teríamos tido se por acaso as nossas melhores ideias nos aparecessem sempre que deviam. São muitas vezes observações espirituosas, ou analogias que se não fosse lembrarmo-nos delas tarde demais seriam espontâneas; mas são também verdades que ao serem aplicadas na altura certa reduziriam os outros ao silêncio e à admiração.

Há um certo desespero em lamentar o facto de não termos podido brilhar pela nossa veracidade e pelo nosso espírito. Como observou um pensador contemporâneo, “a nossa preocupação é assegurar a veracidade das nossas posições.” O que é característico desta fantasia é que as nossas posições só nos ocorram ao descer a escada. Só podem ser asseguradas quando já ninguém está por perto. Acabamos assim por ser as únicas testemunhas das nossas maiores vitórias, e do nosso grande espírito. As outras pessoas nunca perceberão o que perderam por não nos terem acompanhado a descer a escada. ‘Que grande ser humano morreu connosco’, dizemos na hora da morte; referimo-nos sobretudo a tudo o que nunca nos aconteceu.

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