Eu devia ter juízo e não voltar a escrever sobre a RTP. É cansativo e repetitivo. Mas é necessário. Até porque poucas instituições representam, de forma tão clara, de forma tão gritante, os defeitos e as manhas deste triste país. Para além disso pago, todos os meses, taxa de “serviço público de televisão” – isto é, pago taxa por um serviço de que não preciso e que só por engano ao fazer zapping, ou por obrigação profissional, frequento (é uma questão de higiene mental).
O meu pretexto próximo é o mais recente despautério da estação do Estado: a compra dos direitos de transmissão dos jogos da Liga dos Campeões. Vamos só recapitular aquilo que já sabemos. Primeiro, a RTP decidiu avançar com uma proposta de compra dos direitos sem informar o accionista Estado, seja nas pessoas do novo Conselho Geral Independente, seja na pessoa do ministro da tutela. Depois também sabemos que a RTP o fez sabendo que este Governo se tinha oposto a que entrasse no anterior concurso, há três anos, não tendo qualquer indicação de que a vontade do executivo fosse agora outra, como não é. Finalmente percebemos que a administração da empresa actuou com manha, tomando esta iniciativa numa altura em que sentiu que podia aproveitar o vazio criado pela transição entre modelos institucionais: já era independente do Governo e ainda não era dependente do novo Conselho Geral pois ainda não estão aprovados e assinados os documentos que definirão a sua estratégia.
A cereja em cima deste comportamento, com todos os contornos de uma golpada desavergonhada, é a proposta financeira apresentada. Pelo menos 15 milhões de euros, talvez mais de 18 milhões, o que representará um valor mais de 40% acima do proposto pela TVI. A RTP desmente esse valor, mas agrava o descaramento e o despautério ao recusar-se a dizer que valor propôs. Ou a explicar como pagará o investimento sabendo-se que apenas pode comercializar seis minutos de publicidade por hora, contra os 12 minutos de que a TVI necessitava para rentabilizar um investimento mais baixo.
Face a estes factos é necessário ser claro: tudo na posição da RTP é errado, tudo na sua argumentação é espúrio, tudo no comportamento dos seus responsáveis é vergonhoso e oportunista.
Começando pelo princípio: não há nenhuma boa razão para a RTP ter apresentado uma proposta naquele concurso. Uma competição como a Liga dos Campeões pode ser do “interesse generalizado do público”, como até se lerá num despacho ministerial, mas há uma diferença entre interesse do público e interesse público. O público tem interesse em muitas coisas e em muitos programas, alguns deles absoluto lixo, mas isso não faz desses programas emissões de interesse público. Por vezes até é o contrário que sucede.
Não havia também nenhuma “falha de mercado” que recomendasse uma intervenção da estação do Estado. Pior: ao inflacionar o preço do concurso, o que significa que está a fazer sair mais dinheiro de Portugal para encher os cofres da UEFA, a RTP não está a ter qualquer intervenção de regulação do mercado televisivo, está antes a destruir esse mercado, está a abusar do facto de ter os bolsos cheios com o dinheiro de quem tem um contrato de electricidade para fazer concorrência desleal aos operadores privados. Não era preciso a RTP aparecer neste concurso para os portugueses poderem ver, em canal aberto, os jogos da Liga dos Campeões, pelo que nada, mas mesmo nada, justifica a sua vontade de gastar 18 milhões de euros (ou outro qualquer valor) com esse objectivo.
Na verdade, estou a exagerar: há uma coisa que justifica a ida da RTP ao concurso, e essa coisa são os interesses da oligarquia que tomou conta da estação. A RTP hoje é uma estação decadente, com uma audiência envelhecida e cada vez menos qualificada, uma estação que terá em 2014 um dos seus piores resultados de sempre em audiências, uma empresa de onde saíram os melhores quadros, com inúmeros canais mas sem programas de referência. Para essa oligarquia da RTP o futebol é a tábua de salvação, o tipo de programação que lhes permite salvarem aqui e além as audiências (isso mesmo aconteceu durante o Mundial de futebol), horas de emissão que não dão trabalho, não exigem talento e que trazem espectadores.
A RTP não foi ao concurso da Liga dos Campeões em nome de um qualquer idealizado serviço público, nem da necessidade acorrer a um interesse do público que não estava satisfeito, ainda menos por razões estratégicas, pois nem sequer ainda tem o seu plano estratégico aprovado. A RTP foi a este concurso e vai gastar 18 milhões de euros para salvar a pele dos seus dirigentes, para justificar a sua existência, para satisfazer o seu umbigo.
Infelizmente nada disto me surpreende. Há muito que acho que na RTP se confunde o interesse corporativo de quem lá trabalha com o interesse da empresa, e depois apresenta o interesse da empresa como sendo interesse público. Na verdade, na RTP o chamado conceito de serviço público sempre se moldou aos interesses particulares da empresa, pois os seus ideólogos nunca se conformaram com qualquer ideia moderna, aberta, útil, de serviço público. A RTP, não o esqueçamos, é aquela empresa que é capaz de dizer, sem corar de vergonha, que um programa tão indigente e tão ofensivo para qualquer noção de debate político inteligente e informado como a “Barca do Inferno” é “serviço público”.
Infelizmente este episódio também mostra o erro deste Governo, e engano de Miguel Poiares Maduro em particular, quando achou que os problemas da RTP se resolviam afastando-a das interferências do governo por via de um Conselho Geral Independente. Está à vista de todos como, na terra de ninguém que assim se criou, a RTP faz gato-sapato de todos e segue em frente. A empresa tornou-se numa espécie de república autónoma, em completa autogestão, ao serviço exclusivo da oligarquia que a domina. Não responde a nada nem a ninguém, apesar de ser alimentada pelas nossas taxas. Pagamos e, supostamente, calamos: é essa a sua noção de relação com aqueles que são, em última análise, os seus accionistas. Com a perversidade de dar cirurgicamente palco a muitos figurões do regime (o principal dos quais com direito a tempo de antena semanal ao domingo; o outro, um antigo ministro da tutela, capaz de descaradamente ter já aparecido a defender o indefensável), assim silenciando o que devia ser uma justa indignação política e democrática. Goste ou não de se ver no retrato, é esta a RTP de Miguel Poiares Maduro.
Se houvesse uma réstia de dignidade na administração da RTP, esta já teria apresentado a sua demissão. Mas como estamos num país onde se chama espertos aos manhosos, ainda se estão a rir de nós quando emitem um comunicado que é uma provocação à nossa inteligência e à nossa paciência. Pudesse eu ter uma ventoinha no telhado que me permitisse viver sem estar ligado à rede eléctrica, e garanto que deixava hoje mesmo de pagar a taxa.
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