A sociedade é atualmente um assunto interpretativo e muitos efeitos são não-desejados e não-intencionais. As novas categorias do social, a sua matéria-prima, são: a virtualidade, o risco, a simulação, a dissimulação, a representação. A simulação e a dissimulação não deixam ver o princípio da realidade e a plurissignificação da realidade segrega tanta contingência como liberdade. A cibercultura está fascinada pela distinção autenticidade-simulação e a desordem entre consciência e inteligência passou a ser uma linha vermelha entre algoritmos orgânicos e inorgânicos, um lugar onde se deposita, apesar de tudo, a esperança de uma revelação.

Neste contexto, decidi fazer uma aquisição recente, uma adopção virtual, uma espécie de personal coach, um assistente inteligente, o meu algoritmo. O meu algoritmo é uma meta-aplicação, uma aplicação de aplicações, concebido a pensar no meu aperfeiçoamento pessoal. Tenho, pois, um irmão gémeo algorítmico que me segreda ao ouvido as últimas novidades tecno-humanistas do Big Data e do Dataísmo. Será isto o futuro? É uma possibilidade em aberto, entre outras. Eis algumas brevíssimas reflexões a propósito.

1. A modernidade digital ou a digitalização da sociedade

Estamos em plena digitalização da sociedade, das pessoas e das coisas. Doravante, tudo é inteligente “à maneira digital”: a casa, o carro, a empresa, o escritório, a escola, a estrada, o hospital, etc. Tudo adquire vida própria, o real é virtual e o virtual é real. Este é o futuro radioso prometido pela economia do Big Data, ou religião do “dataísmo”. Um “sonho tornado realidade”, a história do futuro à nossa frente com uma impressionante claridade.

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2. O comportamentalismo digital

A economia do Big Data é a liberdade de informação, se quisermos, a mão invisível da circulação da informação. Mais dados, sempre mais dados, e estaremos cada mais próximos da verdade, no grande bazar dos processadores de dados, dos algoritmos e dos meta-algoritmos. O “racional do dataísmo” é encontrar a norma-padrão e prevenir contra a incerteza e o desvio da nossa imperfeita racionalidade orgânica. A grande ambição da inteligência racional do dataísmo é substituir a “nossa imperfeição”, a nossa consciência emocional e individual e a nossa intersubjetividade. Neste sentido, os algoritmos são uma espécie de irmãos mais velhos, se quisermos, narradores autorizados da nossa existência. É melhor segui-los!!

3. A epistemologia dos meta-dados do Big Data

Num oceano de informação só os algoritmos têm a capacidade analítica para processar e tratar tantos “dados irrelevantes” de natureza infra pessoal. O dataísmo constrói assim uma nova linguagem comum e abre a porta a uma nova teoria do equilíbrio geral, uma teoria dos meta-dados que instituem uma personalização sem sujeito ou, então, várias personalizações ou trajetórias possíveis onde nós (ou alguns de nós) podemos escolher “as nossas narrativas”.

4. O reflexo em vez da reflexão

Na religião do dataísmo nós, os humanos, somos um “acontecimento informativo” no grande fluxo de informação. Dos sinais infra pessoais aos padrões supra individuais, somos um reflexo em vez de uma consciência reflexiva, com se a vida se resumisse à personalização de um fluxo de dados. Para um algoritmo do Big Data somos uma informação sempre actualizada, sem passado nem futuro, uns “agora” sucessivos, uma optimização do quotidiano obtido por via de uma vertigem digital desse quotidiano.

5. A correlação em vez da causalidade

À medida que o nosso comportamento converge para o padrão supra individual a correlação aproxima-se da causalidade, fica a personalização em constante movimento e desaparece o sujeito, o algoritmo cumpre, assim, a sua tarefa. Tudo o que vem de trás, do “velho humanismo” perdeu importância e foi sendo dissipado: os sentimentos, as distrações, os sonhos, os desejos, isto é, o nosso passado bioquímico e tudo o que fazia a inteligência emocional do ser humano individual. O comportamento desviante torna-se, doravante, um simples desvio-padrão.

6. Os dados em vez dos conceitos

A velha ciência dos conceitos está em risco, pois dos algoritmos bioquímicos e orgânicos aos algoritmos eletrónicos e inorgânicos tudo cabe no universo do dataísmo. É como se os conceitos fizessem parte da “velha cognição” e revelassem uma margem de incerteza ou “excesso de peso” que já não se compadecem com o rigor metodológico da nova ciência cognitiva. A ciência dos dados e da inteligência artificial não tem excesso de peso, é um novo universo cognitivo que emerge.

7. Antecipamos o vosso desejo, o futuro hoje

Não se preocupem com o livre-arbítrio, nós estamos em condições de traçar o caminho entre o determinismo e o aleatório. Basta que nos prestem toda a informação necessária, que nos cedam a massa imensa de informação que é debitada constantemente e a tempo inteiro em todos os suportes digitais; a um custo marginal zero, com rastreabilidade quanto baste, seremos vossos cuidadores; a partir daí, com o vosso consentimento, o Big Data usará o algoritmo apropriado para nos dizer o que vai ser o nosso futuro hoje.

8. A hibridação do pós-humanismo e do transhumanismo

Não são apenas os algoritmos, pois nesta grande corrente pós-humanista do século XXI entram também os gadgets, as próteses, os órgãos biónicos, os sensores biométricos e os chips nanotecnológicos do homem aumentado e transhumano; esta hibridação pós-humanista abre o caminho para dois debates interessantes: em primeiro lugar, o binómio inteligência-consciência, isto é, os algoritmos são apenas inteligentes ou, também, deep learning consciente, em segundo lugar, este deep learning do sistema algorítmico transporta-nos para um universo transhumanista, para uma nova variedade de espécie humana?

9. Os algoritmos podem ser WMD (armas de destruição matemática)

Cuidado com o lado mais sombrio do Big Data. Os algoritmos têm na sua concepção modelos matemáticos que refletem a ideologia e a orientação de quem os concebeu. Eles podem aumentar as desigualdades e ameaçar a democracia, isto é, podem transformar-se em “armas de destruição matemática” (Cathy O’Neil, 2016, Weapons of Math Destruction). Em momentos decisivos das nossas vidas, podemos “estar distraídos” e confiar demasiado em decisões arbitrárias e discricionárias de alguns algoritmos. Não troquemos os termos da equação, eles são apenas AI (assistentes inteligentes) e não os senhores do universo.

10. Uma arquitetura digital “mais distribuída”

Na sequência do tópico anterior, poderíamos dizer “é a matemática, estúpido”. Com efeito, os algoritmos tanto podem ser uma guarda pretoriana de um candidato a ditador, como a guarda avançada de um capitalismo global e predador como, ainda, uma rede distribuída de proximidade ao serviço de uma sociedade mais igual e democrática. Ao ser tudo isto, o algoritmo revela aquilo que nós já sabíamos, isto é, a sua funcionalidade instrumental ao serviço de “homens sem rosto”, que, geralmente, desprezam os limites da política e as responsabilidades públicas que lhe são inerentes.

Nota Final: humanismo, pós-humanismo e transhumanismo

Estão em marcha alterações societais e civilizacionais de grande amplitude que apenas aguardam uma oportunidade para explodir à superfície. Eis algumas dessas questões finais para reflexão:

  • O humanismo como singularidade desde o século XVI, ou seja, que humanismo para lá dos algoritmos, do Big Data e do dataísmo?
  • O pós-humanismo e o transhumanismo, ou seja, há uma “nova espécie humana”, novas variedades em construção para lá do nosso algoritmo bioquímico?
  • A nossa minúscula ilha de consciência, ou seja, será o pós-humanismo uma transição para outros universos de “sentido e de estados mentais”?
  • Quem são os “homens sem rosto” que manipulam os modelos matemáticos da nossa sociedade algorítmica, ou seja, qual é o grau de responsabilidade pública e democrática que eles nos devem?
  • E sobre a governança da sociedade algorítmica, como é que o pensamento e a acção política lidam com estas novas “corporações do algoritmo, do Big Data e do dataísmo”?

Em resumo, depois de tanto acaso e necessidade, de tanto determinismo e aleatoriedade, estaremos nós reféns do algoritmo, seremos nós os novos crentes do dataísmo? E nesta encruzilhada do tempo, onde fica o nosso livre-arbítrio e a incerteza sobre o futuro, afinal, a nossa pequena margem de liberdade?

Universidade do Algarve