Decorreu este fim-de-semana mais uma cimeira europeia, desta vez em Bratislava, coração do espaço vital germânico e parte de um mundo retocado pela recente adesão à União; zénite de duas Europas e charneira entre o Leste e o Oeste. Mais uma oportunidade para, na gíria da União, manter a “bicicleta” em andamento tal como afirmava Jacques Delors.

Inexplicavelmente, ou talvez não, o Reino Unido não esteve à mesa. Estranho procedimento numa União baseada em regras, tanto mais que como em qualquer outra associação ou organização, só se abandonam os órgãos de decisão depois de uma saída juridicamente válida que neste caso ainda não teve lugar.

Cimeira que ocorreu na mesma semana em que o presidente da Comissão Europeia proferiu o discurso do “estado da União” (imitação um pouco ridícula do discurso anual do presidente dos Estados Unidos da América). O tom foi o de sempre. Fuga em frente, anunciando mais integração e novas estruturas burocráticas, desta vez um quartel-general conjunto em Bruxelas, provavelmente virtual.

Adiante, o ponto importante será saber para quê mais uma cimeira informal? Cumprir o calendário? Ratificar as habituais deliberações de intendência e procrastinar os desafios de fundo? Ceder mais ao populismo, vendendo a alma ao diabo em matérias como a imigração, o terrorismo ou a política orçamental?

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Haverá, pelo contrário, coragem para encostar a “bicicleta” e aceitar que o grande problema da legitimidade da construção europeia, da legitimidade do seu modelo de governação, das suas instituições, reside precisamente na ausência de um soberano, na indefinição sobre a sede da soberania. Ou seja, a questão de fundo resulta de querermos ter na Europa uma democracia sem povo, um “kratos” sem “demos”. Regras em vez de voto popular (mesmo assim têm dias, pois nem sempre as regras são seguidas). Legitimidade só pelo procedimento e não também pelo consentimento.

A Europa não tem um soberano claro e sem esse soberano, o poder será sempre difuso, opaco, irresponsável. Sem um povo europeu, não temos sequer um poder constituinte de raiz verdadeiramente democrática, pois o coração da ideia contemporânea de democracia assenta precisamente na soberania popular.

Na verdade, não temos povo europeu onde a soberania resida, como diz, por exemplo, o artigo 2º da Constituição portuguesa, nem, na nação, como referem os outros textos constitucionais do mundo ocidental, como em França ou Espanha. A ausência de um centro de poder nítido dilui o controlo social e pulveriza os desafios políticos e a nação democrática foi sempre a mediação necessária, ligando a comunhão ao consentimento. Como podemos viver na Europa sem essa mediação? Que associação humana, antiga ou nova, pode ligar hoje comunhão e consentimento?

Ora, num contexto como o atual, em se se vive uma esquizofrenia entre o fervor nacionalista e uma fuga em frente na senda do federalismo, o fim da Europa das nações poderá abrir a porta a um regresso a uma nova idade média.

Com efeito, o Estado-nação foi para a Europa moderna o mesmo que a cidade foi para a Grécia antiga: produziu a unidade e, portanto, o quadro de sentido da vida, produzindo a coisa comum, a verdadeira res publica. Ou seja, a cidade e o Estado-nação são as duas únicas formas políticas capazes de realizar, pelo menos até hoje, a união intima, frutuosa, da civilização com a liberdade. A nação enquanto “plebiscito de todos os dias” (Ernest Renan) foi o substituto da velha Europa assente no poder feudal de carácter fiduciário. Nas palavras de Ernst Kantorowicz, “a nação tomou o lugar do príncipe”.

O Estado-nação ajudou, assim, a religar os povos no espaço e no tempo europeus. Sem o cimento nacional, o natural sentido de pertença é procurado nas identidades, nas regiões e nas religiões. Despojando a nação da sua legitimidade, o momento democrático faz regressar à luz do dia as divisões ancestrais anteriores a esta. Recorde-se que o movimento de meados do século XIX que deu origem aos atuais Estado-nação na Europa chamava-se “ a primavera dos povos”.

Para aqueles que gostam de comparar a atual União Europeia à União Americana (USA), convém não esquecer que esta não rompeu com a matriz hobbesiana do Estado-nação ocidental. Enquanto os europeus pensam e agem como se o Estado-nação tivesse a tal ponto esgotado a sua missão que simplesmente pode ser remetido para a loja de acessórios (ou caixote do lixo da história da política ocidental), os americanos têm enraizado o sentimento de viver ainda num quadro que torna esse acessório, com todos os seus atributos, um instrumento indispensável da sua vida coletiva. A Constituição americana de 1987, por exemplo, começa pela expressão “we the people….” (nós, o povo dos Estados Unidos), algo que faltou à pretensa Constituição europeia, que não chegou a vigorar, e que também não consta dos atuais tratados que foram aprovados em sua substituição.

Recordemos que Winston Churchill quando em 1946 fez o seu famoso discurso na Universidade de Zurique, apelando à criação dos Estados Unidos da Europa, referiu-se a uma União de Estados-nação e não a uma nova nação europeia, que pressupusesse um qualquer novo “povo europeu” (como temos o povo russo, o povo alemão ou o povo brasileiro). Não há uma nação europeia, mas muitas nações europeias. Não há uma pátria europeia, mas muitas pátrias europeias. Não há uma cultura ou uma língua europeias, mas muitas culturas e línguas europeias. Quanto muito, haverá, segundo alguns, um ideal, uma ideia de Europa. É dessa diversidade de povos, nações, pátrias, línguas e culturas que se faz essa ideia de Europa. Disse-nos Jan Patöcka, esse grande europeu lutador pela nobreza de espírito e pela liberdade, que a Europa “nasce do cuidado da alma”.

Mesmo para o filósofo alemão Jürgen Habermas, que defende uma Constituição para a Europa baseada numa cidadania europeia de carácter conceptual e construtivista, resultante duma nova espécie de democracia cosmopolita, os Estados nacionais, enquanto Estados de direito, com o seu passado mais ou menos tumultuoso, continuam a ser “conquistas permanentes e formas vivas de uma justiça que existe”. Isto é, os Estados nacionais continuam a ser poderosos “neutralizadores de evoluções reacionárias ou de retrocesso social”.

É importante manter a nação para salvar a Europa. Apelar à “razão das nações”, como via para o fortalecimento do projeto europeu, caso contrário, continuaremos a caminhar para o abismo duma democracia sem povo, fundada exclusivamente numa abstração de regras e princípios e não numa legitimidade pelo consentimento. O nacionalismo perigoso que grassa e teima em entrar pela janela do nosso quotidiano político europeu é uma perversão da ideia de nação.

Mais uma cimeira mediática para voltar a afirmar a necessidade de reforçar a integração a todo o vapor é um erro. Dever-se-ia, isso sim, assumir a consolidação do que existe, do modelo clássico de União de Estados-nação e de comunidade de povos. Garantindo desse modo uma convivência livre, pacífica e próspera, entre todos os europeus. Os de hoje e os de amanhã…

Professor universitário