Tenho convivido muito na minha vida com o sofrimento físico e emocional, pessoalmente e no meu trabalho. Durante 4 anos geri campos de refugiados e Hospitais de campanha em países em guerra em África. Vi muitas pessoas morrer porque não tinham água potável ou porque não tinham acesso aos mais básicos cuidados de saúde.

Convivi com a  miséria humana no seu extremo e assisti a  muita desumanidade infelizmente própria da guerra e da pobreza.  Mas curioso, e talvez produto de outro modelo civilizacional, nunca vi ninguém pedir para morrer. Vi sim muita gente a pedir desesperadamente para que as ajudasse a viver!

Sofrimento

O sofrimento e a dor física em concreto é um tema que nos assusta muito  e que naturalmente desejamos não ter de experienciar.

A questão que se levanta no debate sobre a eutanásia não é sofrer ou morrer!! Não estamos perante estas duas escolhas de extremo e sem outras opções que não a morte.

Eu sei que a dor se pode mitigar e fazer desaparecer. Sei-o por experiência própria de ter duas doenças graves (uma incurável) e sei-o pelo meu trabalho e pelas soluções médicas que hoje existem.

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Os relatos de doentes que sofrem horrores no fim da sua vida devido à má prática médica em administrar tratamentos que prolongam dolorosamente  a vida e cuja utilidade na promoção da qualidade de vida do doente é nula, estão a ser usados  para defender a necessidade de legalizar a  eutanásia.

Mas o caminho a seguir nas situações de sofrimento insuportável  é  o controlo eficaz da dor (que é possível!) e/ou a ortotanásia se nada mais poder ser feito! Ou seja, devemos evitar tratamentos  inapropriados e inúteis à resolução da patologia do doente. O médico pode e deve administrar tratamentos para controlar os sintomas (sobretudo a dor), mesmo que estes levem a uma redução do tempo de vida do doente. O objectivo aqui é precisamente combater os sintomas e dar bem-estar! E se assim, se abreviar a vida do doente considera-se legítimo e ético em Medicina: é o chamado duplo efeito.

É urgente pôr fim à obstinação terapêutica que fundamenta a iniciativa legislativa de alguns partidos e perceber que a solução não é criar uma lei que permita resolver o sofrimento com a morte.

A solução é parar a distanásia e não legalizar a eutanásia!

Urge reavaliar e fiscalizar a prática médica que leva a este sofrimento desmesurado e que tem de ser evitado a todo o custo. Dê-se também a conhecer aos doentes e seus familiares os seus direitos e o seu poder de recusar tratamentos. Divulgue-se também o Testamento Vital: documento onde é possível manifestar o tipo de tratamento, ou os cuidados de saúde, que se pretende ou não receber, quando se estiver incapaz de expressar a sua vontade.

Para além de corrigir as más práticas médicas podemos também usar os milhões de euros que estão a ser gastos na obstinação terapêutica e melhorar estes cuidados bem como aumentar a rede nacional de cuidados paliativos.

O que o  Estado não pode fazer é demitir-se de prestar cuidados de saúde a estes doentes adoptando uma solução economicista: promover a morte a pedido em vez da vida.

Dignidade

A bandeira do “Movimento Cívico para a Despenalização da Morte Assistida”  e do BE é o “Direito de Morrer com Dignidade”. Defende o BE no seu projeto que: “a pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e em sofrimento duradouro e insuportável” tem o direito de pedir para ser morta por um profissional de saúde.

O que é isto que nos propõem de morrer com dignidade? O que é isto de querermos eliminar o sofrimento com a morte? Para mim esta é uma ideia torpe, distorcida e desumana.

A dignidade é inseparável da nossa condição humana, qualquer que seja a nossa situação pessoal: uma doença grave, crónica, incapacitante ou terminal, ou ainda o sofrimento psíquico e até moral. A vida humana é, como diz a nossa Constituição, a Carta Universal dos Direitos Humanos e a Carta Europeia dos Direitos do Homem: inalienável ! Nada nem ninguém a pode tirar.

Ao contrário do que nos querem fazer querer, o sofrimento físico e mental não nos tira a dignidade. O sofrimento é parte da condição humana e acompanha-nos em todas as fases da vida. Desde logo no nascimento,  a dor que as nossas mães suportaram para nos trazer ao mundo.

Vamos por isso combater a dor utilizando os muitos meios médicos disponíveis (como a sedação ética), esvaziando assim em grande parte o argumento da dor insuportável que só se pode resolver acabando com a vida.

Autonomia e liberdade

Também se diz que estes doentes que pedem a morte assistida não têm dignidade porque perderam a sua autonomia para tudo; até para decidir sobre as suas vidas.

Contudo, ninguém é autossuficiente ou 100% autónomo. Mesmo as pessoas saudáveis. Precisamos uns dos outros e é por isso que vivemos em sociedade.

A base civilizacional sob a qual construímos o nosso modelo de sociedade fundamenta-se na Declaração Universal dos Direitos do Homem que diz no seu preâmbulo que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, justiça e paz no Mundo”

Logo, a autonomia e a liberdade não se sobrepõem ao valor universal  da inviolabilidade da vida humana. Seja qual for a circunstância!

É precisamente o direito à vida (e à dignidade que lhe é inerente) que fundamenta os restantes direitos. A razão é muito simples: não é a liberdade que nos define como seres humanos: é a vida! Dizer que a autonomia (ou a falta dela) é um direito que se sobrepõe à vida  é destruir a realidade e esta lógica civilizacional que  tão arduamente  construímos !

Por outras palavras, dizer que um doente em sofrimento e sem autonomia  tem o direito de morrer e obrigar profissionais de saúde a ajudarem-no a morrer, pois esse direito é superior ao direito à vida, não faz qualquer sentido.

Assim como não faz sentido dizer, como alega o Movimento Cívico para a Despenalização da Morte Assistida, que o direito à morte é tão fundamental como o direito à vida! Este argumento é a negação da nossa Humanidade!

Utilidade

Já ouvi muitas vezes doentes dizerem: “não ando cá a fazer nada, sou um peso para a minha família”. E aqui vem a tentativa de aplicar o conceito de utilidade à vida humana.

Não podemos de forma alguma permitir que os doentes em grande sofrimento pensem que é a eutanásia é a resposta aos seus problemas.

A Mafalda Ribeiro que todos conhecem tem 95% de incapacidade atribuída (oestogénese imperfeita). A sua falta de autonomia não é sinónimo de inutilidade. Ela depende para tudo de cuidadores e da família e consegue, apesar da gravidade da sua doença, dar uma grande contributo à sociedade com escritora e oradora motivacional!

Mas há muitos doentes que nasceram e vivem toda a sua vida numa cama sem poder sequer falar: são os chamados doentes complexos e que estão 100% dependentes de cuidados 24h por dia.

A dignidade humana não pode ser medida pelo critério da utilidade de cada um! Nenhum de nós está livre de amanhã contrair um cancro, uma doença autoimune ou degenerativa que nos deixa numa cadeira de rodas ou pior. Eu já passei por isso.

Há 20 anos estive ligada a máquinas para receber morfina pois tinha dores horríveis. Mas não desisti. A questão da dor resolveu-se e eu passei ainda 5 anos entre uma cadeira de rodas e canadianas. Depois retomei uma vida normal. Há 4 anos foi-me diagnosticada uma doença incurável. Não baixei os braços e consegui um tratamento que me dá qualidade de vida mas não me consegue assegurar a cura.

E se tivessem desistido de mim? E se amanhã quiserem desistir de si?

Ou o que os partidos que querem fazer passar esta lei  não querem é ter de investir naqueles que já não contribuem de forma produtiva para a sociedade? Como só dão despesa e não têm utilidade, vamos matá-los?

E como não há cura para os seus males, ao abrigo desta proposta da legalização da eutanásia, podemos tirar-lhes a vida!

É o que está a acontecer na Bélgica Holanda e Luxemburgo.

Seguindo esta lógica doente, porque não falarmos também da dignidade, autonomia e utilidade da vida dos criminosos condenados? Mesmo os criminosos e assassinos não perdem a dignidade apesar dos actos terríveis que cometeram. Quando se aboliu a pena de morte fez-se precisamente valer este princípio: que nada que o ser humano possa fazer (por mais indigno que seja) o fará perder a dignidade e o direito à vida.

Rampa deslizante

A eutanásia é um recuo civilizacional que não tem retorno. Legalizar a eutanásia abre a porta a todo o tipo de abusos, como defende a teoria da rampa deslizante. Ao permitirmos a morte assistida num determinado tipo de situações médicas, muitas outras excepções se seguirão.

Vejam-se os exemplos da Holanda e Bélgica:

Na Holanda, em 2013, a eutanásia foi realizada em 97 doentes com demência e em 42 doentes com doenças psiquiátricas. Em 2015 praticou-se uma eutanásia a cada hora e meia!!

A legislação holandesa também permite que os médicos ponham fim à vida de recém-nascidos, se nascerem com problemas tão graves que o termo da vida seja considerado a melhor opção.

Na Bélgica, desde a introdução da lei em 2002, já foram propostos mais de 25 projectos de alargamento do âmbito da lei. Recentemente o Parlamento belga votou que as crianças e os adolescentes também podem receber a eutanásia ou o suicídio medicamente assistido. A mais recente proposta de alargamento desta lei é pedir a eutanásia porque se está cansado de viver!

O Quebec, Estado do Canadá,  iniciou um debate sobre a eutanásia involuntária de idosos dementes.

Há uma fronteira que não podemos atravessar sob pena de não conseguirmos viver em sociedade e essa fronteira é não matar!

Termino com uma frase muito conhecida de Winston Churchill: “o mal triunfa quando as pessoas boas nada fazem para o impedir”.

Raquel Abreu é Patient Advocate