A apresentação da proposta de orçamento de estado para 2017 motivou um grande frenesim em torno dos impostos e do défice. A proposta de orçamento é acompanhada das Grandes Opções do Plano, que constitui a estratégia subjacente às contas apresentadas.

Esse documento inclui várias medidas em matéria laboral, umas bem-intencionadas, outras muito perigosas. Estas últimas podem vir a ter grande impacto a médio prazo e não estão a ter a devida atenção das pessoas. Trata-se de medidas que já constavam do programa de governo e do plano nacional de reformas, pelo que o BE e o PC até já apresentaram propostas de lei para as implementar. A inclusão dessas medidas neste documento indicia fazem parte do acordo global de que o orçamento faz parte. Destaco aqui três dessas medidas.

1. Tempos de trabalho e banco de horas

Refere-se de forma expressa que se pretende revogar o banco de horas individual. Para quem não está por dentro destes temas laborais, podemos dizer que o banco de horas é mais ou menos aquilo que a maior parte das pessoas faz no seu dia a dia de trabalho de forma perfeitamente natural: uns dias trabalha mais, noutros dias trabalha menos, ora porque tem mais trabalho não previsível, ora porque dá jeito ao trabalhador sair mais cedo ou chegar mais tarde.

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O banco de horas é há muito tempo uma realidade na vida de muitas pessoas, sendo para muitos impensável trabalhar de outra forma. Mas, apesar disso, o direito do trabalho só reconheceu essa possibilidade em 2009, desde que prevista no contrato coletivo de trabalho. Em 2012 foi criada a possibilidade do banco de horas individual, ou seja, implementado por acordo direto com o trabalhador. É esta possibilidade que se pretende agora reverter.

Esta é uma questão que tem um impacto grande, porque as questões relacionadas com horários de trabalho são provavelmente aquelas em que se nota um maior desajustamento do direito em relação à realidade, e é também uma questão com um enorme peso simbólico.

Como já muitos autores escreveram, o modelo de relação laboral adotado pelo direito durante o século XX foi o da grande empresa industrial. Esse modelo nunca foi verdadeiramente abandonado, apesar de hoje o setor industrial contribuir com pouco mais de 20% dos empregos e representar apenas cerca de 10% do valor acrescentado bruto da economia. Esse trabalho pouco qualificado, pouco variável e com pouca autonomia, já não corresponde à realidade da maioria dos empregos. No que se refere às questões dos tempos de trabalho, a possibilidade de se ajustes às necessidades de ambas as partes é já uma realidade na maior parte das relações de trabalho. Na falta de um regime de banco de horas formal, aquilo que existe muitas vezes é um banco de horas informal. Trabalha-se a mais, mas não necessariamente a menos, ou pelo menos não se contabiliza.

O banco de horas teve a vantagem de garantir uma contabilização formal do tempo de trabalho, de promover o planeamento e a disciplina. É um regime que contribuiu para a produtividade e para a conciliação do trabalho com as necessidades da vida pessoal dos trabalhadores. É por isso que nas empresas que adotaram este regime a adesão dos trabalhadores foi normalmente muito expressiva.

Pretende-se reverter esta ferramenta de flexibilidade, com o argumento de que se pretende relançar o diálogo social. Na prática, aquilo que se pretende é devolver aos sindicatos o poder de decidir se aceitam ou não esse regime, ainda que seja do interesse do trabalhador. Esperemos que se encontre uma solução alternativa que potencie a organização coletiva do trabalho, beneficiando empresas e trabalhadores.

2. Contratação a termo

Prevê-se nas Grandes Opções do Plano a limitação do regime de contrato a termo, nomeadamente revogando a norma que permite contratação a prazo para postos de trabalho permanentes de jovens à procura do primeiro emprego e desempregados de longa duração. Tal como se pode ler nas Grandes Opções do Plano, existe uma grande preocupação com o facto de o mercado de trabalho continuar a apresentar níveis preocupantes de segmentação e precariedade.

Ora, o tema da segmentação já foi muito estudado por Mário Centeno, tendo literatura publicada sobre o tema, em que defende que a segmentação é um dos principais problemas do mercado de trabalho. Conforme explica Mário Centeno nos seus textos, a segmentação é resultado de elevados níveis de proteção do contrato sem termo, que levam as empresas a evitar riscos excessivos nas novas contratações. Defende Mário Centeno que o combate à segmentação passa pela nivelação da proteção dos contratos de trabalho. É por isso que foi muito falado há uns tempos na criação do regime único contratual, em que o trabalhador iria ganhando direitos de forma gradual nos primeiros tempos de duração do contrato. Neste cenário, os contratos a termo seriam limitados a uma situações residuais.

Porém, o governo parece seguir o caminho oposto àquele que é sugerido por Mário Centeno. Ao limitar a utilização de contratos a termo, sem diminuir a proteção dos contratos sem termo, estaremos a empurrar um grupo de trabalhadores para outras formas ainda mais graves de precariedade.

É referido que apenas uma pequena percentagem dos contratos a termo é convertida em contratos sem termo, concluindo-se que se deve limitar o recurso aos contratos a termo. Entre 2012 e 2015 vigorou um regime excecional que permitia a renovação extraordinária de contratos a termo por um período de tempo mais longo. Não existe informação sobre a percentagem dos trabalhadores que tiveram esses contratos com renovações extraordinárias que viram o seu contrato ser convertido em contrato sem termo. Seria interessante comparar essa percentagem com a percentagem geral de conversão dos contratos a termo em contratos sem termo.

Essa informação seria muito útil para perceber em que medida a possibilidade de contratação a termo por um período de tempo mais longo facilita a entrada no mercado de trabalho mais estável. Nessa altura, poder-se-ia perceber em que medida as propostas apresentadas tendem a combater ou até acentuar a segmentação do mercado de trabalho. Mas será que interessava justificar as opções políticas com dados objetivos e históricos?

3. Prestações de serviços

Uma outra iniciativa prevista nas Grandes Opções do Plano consiste em promover a facilitação da demonstração da existência de contratos de trabalho em situações de falsas prestações de serviços, nomeadamente por via da inovação processual no sentido da demonstração judicial da existência de contratos de trabalho em situações de falsa prestação de serviços. Por outras palavras, tem que se facilitar a vida às pessoas com falsos contratos de prestadores de serviços para que esses contratos sejam considerados como contratos de trabalho.

A questão é que já existem mecanismos mais do que suficientes para que os falsos prestadores de serviços possam reclamar a existência de um contrato de trabalho. Existe uma presunção que facilita a prova que o prestador de serviços/trabalhador tem de fazer em tribunal. Basta-lhe provar a existência de alguns indícios para que o tribunal qualifique a relação como laboral.

Além disso, a Autoridade para as Condições do Trabalho pode promover um processo judicial para que se reconheça a existência do contrato de trabalho, mesmo contra a vontade do “trabalhador.” Neste caso, o processo judicial para reconhecer a existência do contrato de trabalho segue o seu curso normal, mesmo que a empresa e o prestador/trabalhador estejam de acordo em que a relação é de prestação de serviços. Mas o governo entende que não chega e que é necessária mais inovação processual.

A proposta de governo referia que se iria criar um mecanismo rápido, seguro e efetivo de reconhecimento de situações de efetivo contrato de trabalho, dispensando-se o trabalhador de recurso a tribunal para fazer prova dos factos apurados, sem prejuízo de recurso arbitral ou judicial por parte do empregador. A ideia será uma espécie de poderes judiciais atribuídos à Autoridade para as Condições do Trabalho? É uma solução muito discutível num estado de direito democrático. Porquê a insistência neste ponto?

Também relativamente a este aspeto, Mário Centeno ensina que o excessivo combate ao auto-emprego parte de um preconceito de o ver como uma espécie de subemprego. Numa visão paternalista, o Estado entende que as prestações de serviços são uma forma precária de trabalho e que para as pessoas é melhor ter um contrato de trabalho do que uma prestação de serviços.

A questão é que hoje existe um conjunto de pessoas que valoriza outras coisas mais do que a estabilidade de um contrato de trabalho. São cada vez mais frequentes relações de colaboração profissional em que o prestador não pretende ter uma relação de trabalho. Muitas vezes esta opção está relacionada com o desejo de ter uma maior autonomia e liberdade na escolha do horário de trabalho a realizar. Por outro lado, o desenvolvimento de comunicações e o surgimento de plataformas tecnológicas tende a conduzir a um crescimento de novas formas de trabalho e em particular do auto-emprego. Isto não quer dizer que não existam verdadeiras prestações de serviços que não precisem de proteção, em virtude do tipo de relação que se cria com o beneficiário da atividade. Mas essa proteção não tem de ser garantida com a inclusão a todo o custo nas regras do contrato de trabalho. Em muitos países existe uma figura intermédia entre o contrato de trabalho e a prestação de serviços pura. E faz sentido que assim seja, porque a realidade não é 100% dualista. Além disso, como explica Mário Centeno, o excessivo combate ao auto-emprego tende a anular outras medidas de incentivo à criação do próprio emprego.

Esta nova realidade social e económica devia ser uma oportunidade para se promover uma reflexão do direito do trabalho, dos seus fundamentos e das suas fronteiras. É essa a reflexão que está a ter lugar na generalidade dos países. Porém, em Portugal, procura-se antes uma defesa intransigente do modelo clássico e um regresso ao passado.

Estas propostas que referi não vêm dar resposta aos desafios dos tempos que se vivem atualmente, passando ao lado da realidade. O problema é que quando o direito passa ao lado da realidade, a realidade passa ao lado do direito. E quando a realidade não tem em conta o direito, são normalmente os mais desfavorecidos que ficam desprotegidos. Esperemos que a defesa dos mais desfavorecidos se sobreponha à necessidade de cedências políticas necessárias para a viabilização do orçamento.