O centenário das aparições de Fátima foi celebrado tranquilamente no fim da semana passada, com a presença do Papa e de centenas de milhares de peregrinos. Não houve desacatos, nem ódios, nem ressentimentos. Pelo contrário, a mensagem foi sempre de perdão, compaixão e paz.

Por outras palavras, o centenário de Fátima foi uma celebração pacífica daquilo que Fátima sempre foi desde o início: o exercício pacífico da liberdade religiosa. Por que motivo terá esta mensagem pacífica gerado tantos ódios entre nós? Por que motivo tantas vozes se zangaram contra a liberdade de Fátima em nome da “verdadeira liberdade”?

Estas perguntas podem agora parecer de mero interesse historiográfico. O autoritarismo anti-religioso da I República está agora felizmente ultrapassado, bem como a manipulação do sentimento religioso pelo autoritarismo de Salazar. O assunto deveria estar por isso encerrado.

Seria bom que assim fosse. A verdade, todavia, é que, em inúmeros países ocidentais, crescem as denúncias de perseguições intolerantes contra os cristãos — por vezes mesmo por algumas autoridades civis, na maior parte dos casos por militantes “secularistas” que se reclamam da “verdadeira liberdade”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Entre os inúmeros livros que ultimamente vêm denunciando o crescimento da intolerância contra o cristianismo no Ocidente, creio que merece particular destaque a obra da norte-americana Mary Eberstadt, It’s Dangerous to Believe: Religious Freedom and Its Enemies (New York: HarperCollins, 2016).

A obra combina duas preocupações. Por um lado, reúne uma impressionante evidência empírica — que, só por si, mereceria leitura atenta — sobre a longa lista de discriminações, ataques e por vezes mesmo perseguições de que pessoas e instituições cristãs têm sido alvo. Os factos dizem sobretudo respeito aos EUA, mas há também alguma evidência empírica relativa ao Reino Unido.

Não há aqui espaço para dar conta da longa lista de casos que a autora recorda. Mas a conclusão a que chega é chocantemente plausível: “Os fiéis cristãos, protestantes e católicos em igual medida, constituem hoje a única minoria que pode ser ridicularizada e denegrida — largamente, unilateralmente, e com impunidade. Para já não dizer que podem ser despedidos, multados ou de alguma forma punidos devido às suas convicções.” (p. 11).

A segunda preocupação da autora diz respeito à interpretação deste fenómeno. Por que motivo um secularismo que reclama para si a causa da liberdade promove uma perseguição agressiva contra a liberdade religiosa dos cristãos?

A autora enfrenta esta pergunta como cristã e também como ocidental — dirigindo-se, por isso, não apenas aos cristãos, mas a todos os que, crentes e não crentes, valorizam a tradição ocidental da liberdade sob a lei. É como cristã e ocidental que recorda uma vasta tradição de autores (crentes e não crentes) que defenderam a “liberdade religiosa contra os seus inimigos” — este é o subtítulo do livro de Mary Eberstadt, que remete propositadamente para a obra de Karl Popper, A Sociedade Aberta e os seus Inimigos (Routledge, 1945).

A autora detecta no actual secularismo agressivo aquilo que Karl Popper designou por “racionalismo dogmático” (por contraste com “racionalismo crítico”): os secularistas acreditam que sabem que a sua “Razão” eliminou todas as interrogações transcendentes — sem saberem que acreditam. O vigoroso alerta da autora contra o dogmatismo secularista faz também lembrar o inesquecível argumento de Raymond Aron, em 1955, contra O Ópio dos Intelectuais e a “religião secular” do marxismo.

Esta arrogância da “Razão” não-crítica (sobretudo não-crítica sobre si própria) conduz o secularismo a um erro fatal: a identificação da liberdade com “libertação através da Razão”. Mary Eberstadt aqui retoma os argumentos de John Stuart Mill a favor da liberdade (negativa) como simples ausência de coerção por terceiros. E alerta para as consequências fatais da confusão entre liberdade e “libertação pela Razão”: a liberdade será substituída pela conformidade com uma nova ortodoxia, imposta pelos alegados detentores da “Razão”.

Mas a liberdade, recorda Eberstadt, será sempre distinta da conformidade. E a primeira liberdade é a liberdade de consciência da pessoa, sendo a liberdade religiosa uma expressão fundamental dessa liberdade. Foi em nome da liberdade de consciência que os cristãos originariamente reclamaram o direito de não idolatrar os deuses pagãos da cidade dos homens. E foi dessa forma, como enfatizou Lord Acton, que o Cristianismo incorporou “fé e liberdade” nos alicerces da tradição ocidental.