Seria preciso que alguém, um dia ou outro, metesse as mãos à obra e escrevesse um livro com muitas páginas com um título do género “Fenomenologia da Consciência de Esquerda” (um título um bom bocado pretencioso, é verdade, mas correcto). Não seria nem um livro sobre a história da noção de esquerda desde a revolução francesa nem uma obra de pura análise conceptual. Seria antes uma descrição de um certo tipo de atitudes mentais que muitas das várias pessoas que gostam de se achar de esquerda em maior ou menor grau partilham. À falta do tal livro, seguem-se breves notas relativas a alguns tópicos centrais.

Em primeiro lugar, a superioridade moral, da qual se deduz uma superioridade política. O que define antes de mais a consciência de esquerda é mesmo isso: o sentimento de uma maior proximidade com o ideal da humanidade e o sentimento concomitante de que a direita milita contra esse ideal e se encontra assim envolvida numa suspeita de ilegitimidade. O facto de se tratar exactamente de um ideal – algo, portanto, afectado de uma forte dose de subjectividade e insusceptível de uma determinação concreta – não incomoda a consciência de esquerda, porque a distinção entre o ideal e o real tende para ela a dissolver-se. Note-se que esta convicção de superioridade moral introduz, desde o princípio, uma assimetria de base. Excepto na cabeça de alguns irredutíveis, mas muito marginais, paladinos da direita, não encontramos nunca a afirmação de uma qualquer superioridade moral da direita sobre a esquerda. A afirmação da superioridade moral é quase exclusiva da esquerda.

Da posição do ideal decorre imediatamente a convicção na fatal marcha do progresso. Em tempos idos, quando a carga teórica da consciência de esquerda era mais forte, o progresso era concebido como sentido da história. Mas esses tempos já lá vão. Agora o progresso é pensado de forma mais lata e imprecisa, mas nem por isso menos carregada de afectividade. Do ponto de vista dessa afectividade, uma afectividade “fracturante”, qualquer alma mais dubitativa é, com toda a coerência do mundo, vista como reaccionária e suscita, como merece, profunda indignação. A esquerda vê-se como única depositária e garante do progresso, mesmo que essa crença entre em conflito com a realidade empírica: muitas vezes o progresso político e social veio da direita.

Ser reaccionário é, para a consciência de esquerda, opor-se à igualdade, uma igualdade que lhe aparece despida de qualquer ambiguidade. O facto de, no plano da sociedade, a igualdade não poder ser considerada apenas de um só ponto de vista, mas dever ser antes encarada sob múltiplos aspectos, muitos deles contraditórios entre si, não lhe coloca qualquer problema. A igualdade permanece, como se diz, a sua bandeira. Essa concepção da igualdade como algo de unívoco tem, entre outras coisas, a ver com a relação que a consciência de esquerda mantém com a linguagem. Muito mais do que a direita, a esquerda concede às palavras um valor encantatório. Curamo-nos pelas palavras. Dizê-las é quase mostrar o seu objecto. Elas aproximam-nos, cómoda e como que magicamente, do ideal. É só fazer força.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Todas as características atrás apontadas conduzem à singular tolerância da consciência de esquerda para com a pequena, e às vezes a grande, violência. A violência aparece senão justificada, pelo menos “compreendida”, quando exercida em nome da exigência de uma igualdade pensada como algo transparente e inequívoco. E ela é tão mais facilmente justificada ou “comprendida” quando feita em nome do progresso em direcção a um ideal que, por definição, é insusceptível de contestação. Essa transigência, mesmo mitigada, em relação à violência aproxima a esquerda tradicional da extrema-esquerda, uma aproximação favorecida pela íntima convicção da ilegitimidade última da direita.

O ideal, muito apropriadamente, é também o ideal da cultura. E não há talvez coisa alguma em que a consciência de esquerda tanto insista como no seu estatuto de mensageira e proprietária da cultura. A cultura é naturalmente de esquerda porque lhe é atribuída à partida um valor moral incompatível com a direita, ao ponto de a própria expressão “intelectual de direita” conter em si, para a consciência de esquerda, uma dimensão paradoxal que, quando muito, convida à tolerância para com certas idiossincrasias pessoais (poucas, graças a Deus!, e em cada caso preciso detalhadamente analisáveis). Significativamente, uma recente petição pública em apoio a António Costa, subscrita por vários intelectuais de esquerda, intitula-se, com uma quase tocante inconsciência, “A Cultura Apoia António Costa”. É preciso acrescentar algo? A “Cultura” podia lá apoiar outra coisa…

Com a cultura vem o sonho. A consciência de esquerda reivindica o direito a sonhar. Tal direito é mais uma vez investido de uma imensa carga afectiva. Tanto mais que a direita, ao censurar o sonho, revela a sua execrável e roubalhona carantonha. Roubar o sonho é roubar o desejo e o futuro e o desejo do futuro. Este onirismo político, se assim se pode dizer, cumpre uma função precisa: a de decorar o ideal com imagens, de lhe oferecer um suplemento de desejo. Se porventura a direita apela a certos factos brutos com que é preciso lidar, esse apelo logo é visto como um gesto ideológico fundado na ausência – ilegítima, sublinhe-se de novo – do ideal moral da esquerda.

Por fim, a consciência de esquerda é uma consciência feliz. Crítica, mas feliz. A crítica da sociedade faz-se a partir de um lugar onde reina a auto-satisfação, favorecida por uma radical ausência de cepticismo em relação às crenças próprias e (para utilizar a expressão de um filósofo) pelo delírio de virtude que resulta da tal ausência de cepticismo. A felicidade da consciência de esquerda releva profundamente de uma facilidade de acreditar desmesurada, e, no limite, de uma convicção extrema no poder mágico do pensamento. Como poderia haver margem para a infelicidade se nos sabemos absolutamente encarnar o ideal moral da humanidade?

Trata-se, no que está escrito antes, de uma caricatura? Não, trata-se sem dúvida de uma simplificação, mas de uma simplificação não caricatural. Todas estas características atribuídas à consciência de esquerda encontram-se, por exemplo, em qualquer linha escrita por Manuel Alegre (e valem quase, se me é permitido, como uma explicação da sua poesia). Claro que Manuel Alegre não é um eminente teórico da esquerda (nem, creio, assim se julga), mas exactamente por isso, por representar a consciência comum no capítulo, é um bom exemplo. (Um outro exemplo, mais streetwise do que Alegre, mas não mais sofisticado, poderia ser o humorista Ricardo Araújo Pereira.)

Convém acrescentar que nada do que disse pretende ser uma crítica à esquerda enquanto tal. É apenas uma descrição de certas crenças que tornam muitas vezes desagradável, quando não impossível, discutir com as pessoas que as partilham. A não ser, admito, para aqueles que convivam bem com o verem-se constantemente sob suspeita e apreciem, atentos e respeitosos, a graça de serem tolerados.