Durante vários anos não me sentei. Também não me assentei. Abanquei. Era no tempo em que abancar precedia arrochar, anos entre o baril, o bué, e o ‘tá-se, antes das cenas, antes do tipo, do tipo do género, e muito antes do top e do bae, embora não tenha sido na Idade da Pedra. Não tenho idade para dizer ‘no meu tempo’, mas quando comecei a abancar tinha idade para aprender a dividir Os Lusíadas em orações subordinadas, coisa que não é do meu tempo. ‘Arrochar’ (será que se escreve assim?) era um estado semi-letárgico a que era atreito quem quer que abancasse. Anos depois, fui apresentada ao conceito de ‘anomia social’. Para o pessoal do andamento, a anomia era, contudo, uma disposição íntima do humor, para entrar na qual bastava encostarem-se a uma parede pintada a tinta de areia. Poucas incitações surtiam um efeito tão imediato como um ‘bora abancar’.

Entre os verbos usados nesse tempo, muitos deles apenas conheciam particípio passado, ou uma conjugação em que acções transitivas, usadas intransitivamente, adquiriam contornos de condenação. Amigos desse tempo, por exemplo, fritaram. Muitos outros agarraram (‘do piston’, claro está). Mas agarrar ou fritar no vazio consistia em agarrar ou fritar em definitivo. O único pós-vida admitido às almas penadas era a fritura perpétua, normalmente no telemarketing. Todas as condições desse tempo se colavam à pele como alcatrão, e a autenticidade era o único valor de trazer ao peito. Como autênticos, apenas conseguíamos viver sob a ameaça da fatalidade, conhecida tão cedo.

Creio que abanquei até 2000 e me sentei, pela primeira vez, perto de 2002.

A esta distância, numa altura em que ninguém se importava com o destino, é espantoso como o calão nos dava como acabados precocemente, ou exprimia como destino possível apenas uma de pouco mais que duas condições permanentes: ‘estar grande’, outro caso, é aquisição que perdura indefinidamente na vida de quem é captado por olheiros num Massamá, ou grava uma maqueta de música que conhece sucesso um único verão. Nada era temporário, nem mesmo as qualidades que se calhava ter. ‘Ser toda boa’, por exemplo, era um atributo sem termo que, se machucado uma vez, o seria para sempre.

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Já quase não uso estas expressões, mas elas são a linguagem em que se exprime o meu gosto, o meu desconsolo, e a minha fúria, ainda hoje. A etiqueta dos abancados é o meu código de conduta, por mais que hoje precise de o descrever por outras palavras, e o perca de vista nas frases completas em que me passei a exprimir. Não sei em que idade se tornará castiço afirmar que curto bué as minhas amigas, mas tenho vontade de sorrir quando nos imagino velhotas a curtir bué um chá de tília. ‘Anda a tricotar alguma cena para o seu neto?’ direi, se lá chegar, em quarenta anos, às companheiras do Centro de Dia. São os nossos ‘caramba’ e ‘ena’, e certamente ninguém dará por eles quando todos os repetirmos à mesa da sueca, num jardim qualquer, baralhando as cartas com os nossos dedos tatuados, tipo do género à espera da morte.

Os insultos mais imediatos e as manifestações mais convictas de alegria e contentamento, os que vêm do fundo, exprimem-se ainda hoje com as palavras trocadas quando nos abancávamos, há tão pouco tempo. Se não sei precisar por que gosto de alguma coisa ou por que antipatizo com alguém, sei pelo menos que a língua materna do meu estômago continua a mesma: a linguagem das paixões e dos ódios, ainda hoje. A vida é passada a tentar não lançar um bué ao chefe; não ver cenas onde não devo; detectando toys e “poetas de karaoke” (cf. Sam the Kid, 1999); chillando quando consigo; curtindo o molho o maior número de coisas, e escapando à vergonha e ao medo como a chuva parva.

Se calha estar a ler, encontro filósofos dreads, romancistas do ‘se bem, colunistas real, e um sem-número de fakes. Serem até hoje dreads, do ‘se bem, real, ou fakes e não admiráveis, interessantes, genuínos, ou impostores, funciona como xarope para vícios e malvadezas conhecidos apenas depois de deixar de me abancar. Estou perante o que se tornaram a minha vida e companhia exactamente como um miúdo que reprime os palavrões que diz na escola, à mesa do jantar. E, no entanto, não sei dizer bem quem está entre parênteses, temendo a morte desta língua já em desuso, como o desvio de um eixo, ou a perda de um sentido de orientação. Por enquanto, ela persiste em mim como um fóssil, embora eu me saiba, mesmo que jovem, como aquelas pessoas que apenas ouvem vida fora a música que ouviam quando eram novas. Estranha coisa, a linguagem, que nos fossiliza em tenra idade: nos envelhece tão cedo. Tão frescos por fora, por dentro dinossauros.

Até quando a linguagem em que escrevo será o parênteses e o meu dialecto nativo o de um concelho, de uma freguesia, de uma rua, de um banco de cimento, que ficou para trás há cada vez mais anos? Até quando a minha vida será apenas um parênteses desse parágrafo definitivo? Quando será que o que sou precisará de uma oração subordinada para se dizer, se fazer entender, odiar, amar — ser seja o que for que o futuro me reserve?

Todas as minhas dúvidas se expressam no dialecto do andamento, que está longe de ser dado como extinto, ainda que a cobardia esteja sempre ao virar da esquina. A verbosidade e a esterilidade até das palavras ‘verbosidade’ e ‘esterilidade’ são posteriores a ter aprendido a sentar-me. Pouco importa tanto como o que já importava naquele tempo, e se dizia tão depressa, para mal daquilo em que me vou tornando. Escrever como se me abancasse — chega como compromisso.

Djaimilia Pereira de Almeida é autora de “Esse Cabelo” (Teorema/Leya, 2015).