Às vezes, tudo parece, por cá e lá fora, tomado de uma loucura tão mais assustadora quanto aceite como normal pela maioria das cabeças falantes. Ver televisão tornou-se um pesadelo a evitar: é a porta de entrada para um manicómio. O pior é que, a não ser que se seja dotado de uma força de carácter sobre-humana, os deslizes são inevitáveis.

Consegui, pelo método simples de não me lembrar da coisa, escapar aos debates entre Santana Lopes e Rui Rio. Mas não consegui, por exemplo, escapar à notícia de que o PS se prepara para, mal tenha oportunidade, correr com Joana Marques Vidal do cargo de Procuradora Geral da República. Tendo em conta a dimensão simbólica da sua acção nestes últimos anos, o gesto equivale praticamente a pôr um ponto final na pouca confiança que ainda depositávamos nos políticos. Devo ser um tipo particularmente populista, porque dei comigo a pensar que Costa e os seus se comportam como uma quadrilha de malfeitores.

Pior, muito pior: não consegui escapar a um momento da cerimónia dos tais “Globos de Ouro” em que o pobre do Kevin Spacey, um excelente actor, se viu, junto com Harvey Weinstein, atacado de todas as maneiras e ridicularizado pelos representantes da comunidade profissional a que pertence – ou pertencia. Hollywood segrega agora um macartismo da sua própria lavra. Potencialmente não menos horrível do que o outro e recebendo a beatífica unção do “anti-trumpismo”. O grotesco passou a ter ali um lugar de eleição. Devo, de facto, ser um tipo excepcionalmente populista, porque o nome que me veio à cabeça para designar aquilo não se pode aqui escrever.

Nestas alturas, dá vontade de pensar o pior. Para pesar os tempos e ganhar em relação a eles alguma distância que nos permita avaliá-los. Por acaso, a lembrança do pior veio-me exactamente a partir do cinema, mais precisamente de três filmes do cineasta húngaro István Szabó, que revi recentemente. São eles “Mephisto”, de 1981 (com Klaus Maria Brandauer); “Sunshine”, de 1999 (com Ralph Fiennes); e “Taking Sides”, de 2001 (com Harvey Keitel). Todos eles lidam, cada um à sua maneira, com o sistema mental de colaboração com o mal engendrado pelos regimes totalitários (o nazismo em “Mephisto” e “Taking Sides”; o nazismo e o comunismo em “Sunshine”). Não vou aqui analisá-los nem sequer contar as suas histórias. O importante do que eles revelam deixa-se dizer facilmente.

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Submetidos à pressão e à sedução do totalitarismo, os artistas e os intelectuais, como praticamente toda a gente, organizam para si um sistema de ilusões que lhes possibilita criar a convicção da sua própria excepcionalidade. Essa suposta excepcionalidade permite-lhes colaborarem com o regime, mantendo ao mesmo tempo o sentimento de não colaborarem, porque o fazem em nome de um valor espiritualmente eterno acima da política. São e não são aquilo que são, como o Iago de Shakespeare. Ou, como na má-fé genialmente analisada por Sartre, magicamente se libertam da própria factualidade das suas acções em nome da vida do espírito.

É assim com o actor e encenador de “Mephisto”, um antigo comunista a quem os dignatários nazis oferecem a direcção de um importante teatro em Berlim. E é assim com o grande maestro Wilhelm Furtwängler em “Taking Sides”. O caso de “Sunshine”, que narra a história de três gerações de uma família de judeus húngaros assimilados, do Império Austro-Húngaro à queda do comunismo, é certamente diferente, mas toca os mesmos problemas de um outro ponto de vista. O actor de “Mephisto” e o Furtwängler de “Taking Sides”, no entanto, revelam, como em nenhum outro filme que tenha visto, o incalculável grau de mentira interior a que uma cabeça humana se encontra disposta. “Taking Sides” é particularmente interessante, já que lida com uma figura de uma grandeza artística imensa e que, de resto, oferece vários aspectos humanos louváveis.

Uma pessoa põe-se a pensar no grau de tolerância que se deve adoptar face àqueles que a danada da história colocou nas piores situações. Pessoalmente, a minha tendência, nos casos em que a aceitação do regime não implica participação activa na obra de destruição, tanto nazi como comunista, é de procurar compreender com um mínimo de simpatia. Mas essa não é de todo a posição do major americano Steve Arnold (Harvey Keitel), que, no fim da guerra, interroga com brutalidade verbal Furtwängler, a propósito, entre outras coisas, de um concerto dado no aniversário de Hitler. Tudo o que os membros da orquestra dizem para o proteger (e sobretudo, é claro, para se protegerem a si mesmos) é memorável: foi na noite anterior ao aniversário, não foi na noite do aniversário; Furtwängler não fez a saudação nazi, porque tinha propositadamente a batuta na mão direita, tornando impossível o gesto; e por aí adiante. Um pouco como naquela história em que um casal é assaltado em casa, os criminosos traçam um círculo no chão e violam a mulher sob os olhos do marido, proibindo-o de pôr o pé dentro do círculo. Depois de se irem embora, o marido dirige-se à mulher, com um sorriso vitorioso nos lábios: “Pisei o círculo e eles não viram”. Este raciocínio, mais vulgar do que parece, não convence Harvey Keitel, que vê repetidamente as imagens, filmadas em campos de concentração libertados, dos bulldozers que empurram para valas comuns montes de cadáveres escanzelados. A esses, particularmente aos judeus, é que a história colocou na pior das situações. E é difícil não lhe dar razão. (A propósito: o autor do artigo da Wikipedia sobre o filme muito significativamente não lha dá: é a brutalidade do major americano que o choca.)

Há um pormenor nisto tudo que vale a pena ser mencionado, porque ilustra algo de essencial para o tema destes filmes, algo que tem a ver com o próprio realizador, István Szabó. Em 2006 foi revelado que Szabó havia sido informador do regime comunista húngaro. Mais precisamente: entre 1957 e 1961 havia escrito quarenta e oito relatórios sobre setenta e duas pessoas, denunciando colegas e professores da Academia das Artes Teatrais e Cinematográficas. Quando a coisa se soube, primeiro deu uma explicação esfarrapada; depois, confessou que o seu principal motivo fora evitar ser expulso da Academia. Sabia do que falava nos filmes. A história é vulgar entre intelectuais e artistas, alguns muito conhecidos, nas defuntas “democracias populares”dos países de Leste. A fragilidade humana é assim.

Fragilidade? As histórias dos filmes de Szabó indicam antes, creio, outra coisa. Num escrito importante, A religião nos limites da simples razão, Immanuel Kant distingue três graus na inclinação ao mal, que contrabalançam nos seres humanos a disposição ao bem: de acordo com as traduções geralmente aceites, a fragilidade, a impureza e a malignidade (muito curiosamente, na Ética a Nicómaco, Aristóteles, num contexto filosófico obviamente diferente, estabelece uma tripartição muito semelhante: aceitando mais uma vez as traduções mais usadas: a fraqueza de vontade, ou intemperança, o desregramento e a maldade). Para Kant, a impureza designa algo de mais profundo do que a simples fragilidade, uma contaminação da nossa maneira de pensar por motivos contrários à lei moral. Não apenas uma fraqueza: algo de pior do que isso. Ora, não creio que o actor de “Mephisto” ou o Furtwängler de “Taking Sides”sejam exemplos de malignidade. Mas também não se trata apenas de fragilidade. Os regimes totalitários criam um tipo antropológico em que a impureza passa a ser a condição normal da maneira de pensar dos indivíduos. Hendrick Höfgen, o actor, Furtwängler e, à sua maneira, o próprio Szabó, são exemplos disso.

E nós, nas nossas democracias? Os exemplos mais costumeiros são os de fragilidade, sem dúvida. Mas as seduções de viver encostado ao poder trazem consigo impureza na maneira de pensar. Os exemplos são muitos. E não apenas as seduções de viver encostado ao poder. Os surtos colectivos de delírio de virtude também.