Henry Sigeris, professor de História da Medicina em Zurique e Leipzig durante as décadas de 1920 e 1930, contou um dia que, durante as pesquisas para um seminário sobre a Grande Depressão e os efeitos das carências económicas para a saúde das populações, deu com uma conferência intitulada: “De populorum miseria: morborum genitrice”, isto é: “Miséria do povo, a mãe de todas as doenças”. A conferência tinha sido escrita em 1790, em Pavia, então sob o governo iluminado e absoluto do imperador austríaco Leopoldo II, e o seu conteúdo era assaz extraordinário. Apontava a pobreza extrema do povo como causa principal das suas moléstias e defendia que a solução passava por reformas que garantissem alimentação, casa e higiene às populações.

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O autor, um tal Johann Peter Frank, não era um subversivo. Director, à época, dos hospitais de toda a região da Lombardia, será em 1795 conselheiro do imperador e director do Hospital Geral de Viena, e, em 1805, médico pessoal do czar Alexandre I e reitor da Academia Médico-Cirúrgica de S. Petersburgo. Na verdade, as ideias de Frank e o seu percurso concordam perfeitamente com o pensamento dominante no tempo. Nascido no ducado de Baden, em 1745, Frank estudou medicina em Metz e Pont-a-Mousson, onde se fascinou pelos filósofos das Luzes. Partilhou com eles a crença numa verdade única, semelhante às verdades geométricas das ciências naturais, acessível a todos os homens e a partir da qual se poderiam deduzir acções correctas e incontestáveis em todas as situações. Conhecidos e controlados todos os factores necessários, devia ser possível aceder a um estádio de máximo bem-estar – neste caso, de máxima saúde (não é acidente que a definição de saúde dada pela OMS seja “”um estado de completo bem-estar físico, mental e social”).

Johann Peter Frank é também o exemplo de como as grandes ideias podem ser a origem de grandes males. Do conceito monista de Verdade, Frank derivou a ideia de que pode e deve impedir-se as pessoas de fazerem o que lhes faz mal. Se a noção de Bem é una e racional, nada justifica que alguém, excepto por doença ou engano, queira agir de forma que lhe seja prejudicial. A intemperança – comer demasiado, dançar até uma fase tardia da gravidez ou frequentar bordéis – não conduz à felicidade. Ao contrário: afasta-nos do instinto natural de auto-preservação que nos foi instilado originalmente pelo Criador. Ao mesmo tempo que defendia cuidados de saúde generalizados e o papel do Estado na melhoria das condições de vida das populações, Frank entendia que, para controlo das doenças venéreas, as “mulheres da vida” deviam ser encerradas em bordéis, e que os portadores de doenças graves e hereditárias deviam ser impedidos de contrair matrimónio ou ter descendência.

Na verdade, Frank é um precursor dos movimentos médicos que, no final do século XIX e na primeira metade do século XX, promoveriam uma frutuosa relação entre a Higiene e a Polícia, e que, com as teses sobre alienação e degeneração, caucionariam os albergues de mendicidade e os pavilhões de segurança dos hospitais psiquiátricos – onde eram internados de forma compulsiva e inapelável vagabundos e homossexuais, de mistura com esquizofrénicos e doentes mentais de vários tipos (*).

(*) Ler, sobre o caso português, “O Estado Novo e os seus Vadios”, de Susana Pereira Bastos (Dom Quixote, 1997).

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