O Prof. Gonçalo Ribeiro Telles fez este ano 95 anos. Tive a rara oportunidade de acompanhar de perto a sua obra e fui desde muito cedo influenciado pela sua imensa inspiração. O meu livro “A caminho da 2ª ruralidade” foi dedicado a Gonçalo Ribeiro Telles que teve a gentileza de estar presente no dia do lançamento. Seja-me permitido nesta oportunidade, por ocasião dos seus 95 anos, trazer a público alguns excertos desse livro e prestar-lhe esta singela mas sincera homenagem.
I. Entre a 1ª e a 2ª ruralidade
Já todos conhecemos os atributos próprios da 1ª ruralidade, aquela que corresponde e coincide com o tempo, o espaço e a circunstância do modelo urbano-industrial da 1ª modernidade. Com efeito, a 1ª ruralidade é filha directa das grandes oposições da 1ª modernidade: natureza-cultura, economia-ambiente, agricultura-indústria, moderno-tradicional, privado-público, cidade-campo, sector-território, particular-geral. Estas oposições criaram uma longa série de ideias-feitas e pré-conceitos que ainda hoje perduram e muito ruído em redor da defesa apologética destes binómios.
Quanto à emergência da 2ª ruralidade, ela será a era da paisagem global, do sistema-paisagem, da ecoregião, da cidade-região, enfim, dos sistemas territoriais; mais do que inverter os termos da equação da 1ª modernidade, trata-se, agora, de substituir a oposição dos termos pela sua fusão, integração e diversificação, em ordem à criação de novas funcionalidades e territorialidades e, nessa linha, de abrir um imenso campo de possibilidades ao futuro.
Na 1ª ruralidade, os volumes cresceram e esmagaram as formas, por isso o mundo rural era o “outro mundo”, uma espécie de evasão ao mundo urbano-industrial cada vez mais violento e alienante. Na 2ª ruralidade, a natureza e a cultura favorecerão, em princípio, a espessura e a densidade dos territórios e, também, a recomposição das suas formas o que, ao acrescentar “mais campo” à sua dimensão exterior, lhe dará uma dimensão mais humana.
A 2ª ruralidade é, ainda, e sobretudo, uma reacção “vinda da cidade”. Nessa exacta medida é, para já, uma reacção mais descontextualizada ou desestruturada, se quisermos, para simplificar, uma reacção pós-moderna. Nesta mesma linha de pensamento se enquadra a pluralidade e a diversidade de “acontecimentos ou eventos” que, hoje, invadem o mundo rural. Com efeito, “o mundo rural acontece cada vez mais” e estes acontecimentos podem gerar nele uma “nova estrutura de oportunidades”. O que nós perguntamos é se o mundo rural “assim acontecido”, plural, caótico e desordenado, está em condições de prescindir da ordem dicotómica do modernismo anterior ou se, pelo contrário, “está obrigado” a procurar um novo equilíbrio entre a desestruturação da pós-modernidade e a reestruturação da modernidade tardia trazida até nós pela Modernização reflexiva (Beck et al, 2004).
Na 2ª ruralidade andaremos à procura de conceitos abrangentes e eclécticos que estejam adaptados à complexidade da nossa actual circunstância e, correlativamente, de sistemas territoriais ou complexos geográficos, que os possam acolher e aplicar; onde antes estavam conceitos dicotómicos e fechados estarão, agora, conceitos abertos e envolventes como os conceitos de paisagem global, cidade-região ou cidade-território, conceitos de continuidade. A recontextualização proporcionada por estes novos conceitos visa dar uma nova oportunidade aos fragmentos territoriais da 1ª modernidade, sejam urbanos ou rurais.
Quando falamos de sistemas territoriais, como a unidade de paisagem ou a cidade-região, queremos dizer mais espessura e profundidade territoriais ou “mais campo”, onde tudo pode acontecer de forma mais proporcionada, com mais ecologia e mais cultura, mais arte e mais técnica. O que isto quer dizer é que andamos à procura de uma “ordem nova” que seja capaz de conciliar “acontecimentos com estrutura”. No dia em que a ecologia e a cultura forem capazes de criar uma grande variedade de sistemas territoriais e paisagísticos, mais autónomos e auto-centrados mas, também, mais reticulados, estaremos, seguramente, mais próximos de uma “nova estrutura de valor” e no limiar de arranjos ou sistemas produtivos locais mais conformes com uma rede de cidades-região, com mercados e redes dedicadas de distribuição e retenção de mais-valias nos respectivos hinterlands.
A 2ª ruralidade anda, igualmente, à procura de uma escala ecológica mais ampla que nos proporcione a oportunidade de uma gestão integrada de comunidades, ecossistemas e mosaicos paisagísticos, logo, a produção de uma gama mais alargada de bens públicos e benefícios de contexto, úteis para aumentar a produtividade natural e específica dos agroecossistemas. O compromisso entre uma escala alargada, por razões sistémicas e funcionais, e uma escala operativa, por razões práticas e experimentais, determinará a unidade ecológica ou paisagística relevante para efeitos de planeamento biofísico e intervenção socio-comunitária.
Na 1ª ruralidade, as razões ecológicas e culturais são quase sempre de ordem secundária porque, no mínimo, desviam recursos escassos para estratégias que não rendem no curto e médio prazo. Acresce que as várias “fracções” do capital estão em luta pelos recursos escassos e essa luta tem expressão na forma de ocupar e ordenar o território A consideração de várias escalas de intervenção, do local ao regional e ao nacional, e a articulação dos pontos de vista morfológico e topológico numa perspectiva de reestruturação do espaço público, tendo em vista a integração dos diversos fragmentos urbano-rurais que nos foram legados pelo modernismo, é uma tarefa imensa e uma missão para ser levada a cabo pela 2ª ruralidade.
A cidade-região, devido à sua maior profundidade territorial e às várias escalas que encerra, pode propiciar soluções muito diversas e inovadoras, públicas, privadas e mistas, para a valoração e gestão da biodiversidade e dos serviços ecossistémicos (BSE). A pluralidade de valores naturais e culturais oferecida pela BSE não se compadece com fórmulas simplistas de apropriação privada e mercado, que acabam por criar, quantas vezes artificialmente, escassez, preços altos e discriminação, reduzindo a oferta de certos valores mais intangíveis e menos valorizáveis, por contrapartida daqueles, mais tangíveis, que apresentam um retorno mais imediato e que, quantas vezes, limitam o acesso aos particulares e o seu bem-estar. Respeitar e fazer cumprir a integralidade desses valores naturais e culturais será uma tarefa inalienável da 2ª ruralidade, sob pena de deixarmos o caminho livre para os diferentes rentismos expectantes que usam os recursos naturais como activos e objecto de aplicações financeiras especulativas.
A 1ª modernidade consumou o divórcio entre as ciências naturais e as ciências sociais e poucos autores foram capazes de estabelecer relações fiáveis entre esses dois ramos das ciências. A 2ª ruralidade retomará a ligação umbilical entre as ciências naturais e as ciências sociais no que diz respeito às relações entre a biociência (as biotecnologias, as engenharias genéticas e as nanotecnologias), a deliberação política e pública, a vida em sociedade e a vida na natureza. Ou, dito de forma mais cruel, o homem e a natureza correm o risco de serem, ambos, “produzidos”, o mesmo é dizer, serem fruto de uma “biopolítica”. Se pensarmos na manipulação genética, na clonagem, nas técnicas de fertilização e nos mapas genómicos, se pensarmos na relação entre alimentação, saúde e longevidade e no impacto desta relação na vida das pessoas concretas e na representação que elas fazem de si mesmas e da vida em sociedade, estaremos a falar de intrincados processos de subjectivação contemporâneos mas, sobretudo, de uma construção social e política muito diferente, uma espécie de “mundo novo”, onde tudo pode acontecer, pois a sociedade e o meio ambiente poderão ser convertidos num gigantesco laboratório.
Na 2ª ruralidade iremos assistir, também, ao paradoxo dos lugares: lugares cheios são considerados não-lugares e lugares vazios são considerados lugares simbólicos e destino de peregrinações. A hipermodernidade dos não-lugares (Augé, 1994) diz-nos que as coisas são o que são independentemente dos contextos, valem por si mesmas, têm valor intrínseco e por essa razão criam, elas próprias, novos contextos. Esta tendência tem correspondência na não-linearidade dos fenómenos naturais, com fortes implicações no modo de conceber e organizar o espaço. Na fronteira entre o caos e a ordem, a 2ª ruralidade estará presente, lá onde a pressão do crescimento se exercerá sobre os sistemas ecológicos. Nessa presença a 2ª ruralidade poderá ser mais espaço de consumo do que espaço de produção e, nessa medida, acabar por sacrificar a forma à função, explodindo, por essa via, numa multiplicidade de contextos individuais ou individualizados em redor de cada acontecimento ou evento. E quem sabe, nesta explosão de formatos e funções, acabar por adquirir a beleza da complexidade.
A cidade da 1ª ruralidade é, simultaneamente, utopia e atopia, pois como utopia ou ideal, perdeu-se na própria cidade, em espaços designados de subúrbio, periferia, não-lugares. Há cinquenta anos, a condição urbana levava a melhor sobre a condição rural. Hoje, os progressos gerais da civilização e da cultura fazem com que uma 2ª ruralidade possa superiorizar-se, em muitos casos, à actual condição urbana.
Na 1ª ruralidade nós assistimos, ainda hoje, à proletarização dos ecossistemas e à generalização das monoculturas, à imagem e semelhança dos exércitos de reserva industrial ou, agora, da precarização do trabalho. Na 2ª ruralidade a luta política será intensa e por vezes brutal, a ecologia política assumirá a frente do combate em prol da justiça ambiental (Alier, 2007), tudo em nome de uma outra ecologia humana onde o homem e a natureza serão libertados conjuntamente.
Dois últimos aspectos caracterizarão a 2ª ruralidade. O primeiro diz respeito à estetização do mundo rural, o segundo ao conceito de “região cognitiva” que remete novamente para a cidade-região e o sistema-paisagem.
Quanto ao primeiro aspecto, sabemos já que a diversidade cultural é tão importante como a diversidade natural e que está em construção um novo universo simbólico a propósito do mundo rural. Digamos que esta estetização chega, em primeira instância, por via dos eventos e da visitação e os motivos são muito diversos: a agricultura biológica, os roteiros gastronómicos, as peregrinações religiosas, as feiras medievais, os desportos radicais, a ecologia radical, etc. Esta maior mobilidade criará novas territorialidades, onde se mistura nostalgia, hibridização cultural e multiculturalismo. No final, em vez de termos criação e arte poderemos ter tão-somente pastiche, isto é, muitos elementos de proveniência diversa para criar híbridos e transculturais. Quando o hipercapitalismo se aperceber de que o mundo rural pode proporcionar todos estes efeitos estéticos e terapêuticos em benefício próprio irá avançar a toda a força pelo campo adentro para tirar partido dessas diferentes narrativas sobre o campo e o mundo rural.
Mas a 2ª ruralidade, deste ponto de vista, reserva-nos algo de muito mais sublime e superior. Nas palavras do Prof. Francisco Caldeira Cabral … a beleza deve ser o reflexo espontâneo da boa adequação da obra ao fim proposto, como qualidade intrínseca, e não, como geralmente se supõe, em resultado de uma série de operações posteriores e, portanto, extrínsecas, chamadas embelezamento… (Cabral, 2003: 40). A 2ª ruralidade prestará, assim, homenagem a uma filosofia da terra, a uma certa “geofilosofia da estética da paisagem” (Bonesio, 2011: 465-473).
O outro conceito central da 2ª ruralidade é o de “região cognitiva”, um conceito complexo e compreensivo que alberga no seu seio outros conceitos como o de cidade-região e o de sistema-paisagem e que visa criar imagens mentais e representações sociais que considerem os centros urbanos e as áreas rurais como uma mesma “região cognitiva”, convertendo as cidades em pontes efectivas entre as áreas rurais e o mundo exterior, porque os problemas do mundo rural serão, doravante, uma parte integrante e fundamental da agenda urbana.
II. A 2ª ruralidade em Gonçalo Ribeiro Telles
Feitas estas apreciações, vejamos, agora, como a 2ª ruralidade já se adivinhava e anunciava no pensamento, ideário e acção do Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles (GRT). Para o efeito, reunimos uma série de excertos, retirados de livros, artigos e entrevistas de várias épocas, que aqui reagrupamos em volta de quatro temáticas principais. A maioria desses artigos pode ser lida no livro A utopia e os pés na terra de 2003. Destacamos, igualmente, a entrevista dada à revista Visão no mesmo ano de 2003.
Sobre o carácter da paisagem global e multifuncional
É a ligação à terra que faz uma cultura. Ninguém diz, “é o nosso urbano”, toda a gente diz “é a nossa terra”.
A paisagem é bela porque está humanizada, uma construção humana feita com materiais vivos. Se a artificializamos fica um objecto decorativo, um adorno, um acessório de um produto, um cenário arranjado.
Há 50 anos, o que era contínuo na paisagem era o sistema natural. As cidades eram pontos. Hoje é o contrário. O contínuo na paisagem é o construído, o pontual é o que resta da agricultura, de espaço livre, que passou a ser descontínuo. Temos que estabelecer corredores. Não há plano de desenvolvimento sustentável sem agricultura.
Ao mesmo tempo que se transforma, vai aumentando o interesse e a procura de paisagem rural por outros utilizadores que não os que nela vivem. É neste contexto que se fala de multifuncionalidade da paisagem rural, porque dela se esperam várias funções: produção, conservação, recreação. O carácter da paisagem não depende já da agricultura mas de muitos outros actores.
Se as pessoas a nível local não foram envolvidas na discussão sobre o que é a paisagem harmoniosa e bela, o carácter da paisagem, não conseguiremos evitar essa tendência de perda de carácter da paisagem e, nessa altura, não serão suficientes as convenções internacionais criadas para a salvaguarda dos valores cénicos de certas paisagens ou de determinada componente do sistema agrícola ou habitat.
O futuro da paisagem está comprometido pela agricultura, pela floresta, pelo urbanismo, soluções temporárias de riqueza. Continuamos a viver do quotidiano e com uma imagem errada do país. Aumentaram-se as necessidades, forjadas pelo capitalismo, não se aumentou a cultura.
Sobre a chamada “modernização da agricultura”
Os romanos dividiam o território em três áreas, além da urbe: o ager, que era o campo cultivado intensamente, o saltus, a pastagem, a agricultura menos intensiva e a silva, a mata de produção de madeira e de protecção. Todo este ordenamento foi transformado, acabou-se com a silvicultura e começou o culto da floresta, que não temos. Se formos ao campo perguntar onde fica a floresta, eles só conhecem a do Capuchinho Vermelho, porque o que têm na sua terra são matas e matos. No século XIX o pinheiro bravo veio para responder às necessidades do caminho-de-ferro que estava em lançamento. Mais tarde é que vem a resina, a indústria da madeira e a celulose. O pior é que se transformou o país num território despovoado o que, dadas as características mediterrânicas, arde com as trovoadas secas.
A diminuição da população activa na agricultura, como um objectivo de política de desenvolvimento, é um logro. A sequência é conhecida: a fileira, a agro-indústria, a monocultura extensiva, a uniformização do espaço, o despovoamento, o incêndio. É fazer crescer os problemas no litoral, o congestionamento, e no interior, o abandono e a desertificação.
Onde há monocultura, não há população, porque a monocultura não precisa de gente, precisa de máquinas; a monocultura rebenta com os solos, a fileira causa predação vertical e desertifica. A monocultura não é cultura.
O erro foi considerar a agricultura uma indústria, com a criação de monoculturas, trigo e floresta, que quebraram o mosaico mediterrânico e impediram a circulação da água e da matéria orgânica. Mas esta floresta monocultural de resinosas e eucaliptos, limpa ou não limpa, não serve para mais nada senão para arder. É uma floresta que vive para não ter gente. Se houvesse lá mais gente aquilo não ardia assim. Pelo contrário, o carvalho, por exemplo, é acompanhado por toda uma panóplia de rendimentos como a cortiça, a pecuária, a produção de mel, as aromáticas e a caça.
A chamada modernização da agricultura é um escândalo de incompetência. As universidades de agronomia em Portugal tiveram um período de grande pujança intelectual no fim do século XIX e no princípio do século XX. Agora, parece terem-se rendido ao economicismo. Estamos numa cultura mediterrânica e não se pode traduzir o desenvolvimento em unidades economicistas de produção de grande volume de dois ou três produtos. É da polivalência, da multiplicidade de produtos e da harmonia da paisagem que resulta a possibilidade de ter uma população instalada em condições de dignidade.
Sobre o “estigma social” do mundo rural
O mundo rural foi considerado obsoleto, como qualquer coisa que vai desaparecer. Veja-se o disparate que foi a política de diminuição dos activos na agricultura. Contribuiu para o aumento dos subúrbios, dos bairros de lata e da emigração. Trouxe alguma coisa melhor para a província? Não. Apenas um grande negócio para as celuloses e para os madeireiros.
Os agricultores foram convencidos de que eram uns labregos. Houve toda uma política de desprestígio do mundo rural tendo por base a ideia de que era inferior ao mundo urbano.
Esqueceram-se de que o homem do futuro vai ser cada vez mais o homem das duas culturas, da urbana e da rural. Hoje, 30% das pessoas que praticam a agricultura económica na Europa não são agricultores. É gente que vive na cidade, tem lá o seu escritório e tem uma herdade no campo onde vai ao fim de semana.
A terceira geração de emigrantes vai morar para as casas velhas, vai recuperá-las, não vai viver ao estilo maison. Na “casa nova” mora uma tia velha a apodrecer de reumático ou está pura e simplesmente fechada.
Sobre a cidade, o urbanismo e o ordenamento do território
A cidade monolítica, que cresce à custa da destruição de recursos naturais e de valores culturais, avançando no território sem olhar ao necessário equilíbrio energético e à sustentabilidade ecológica, está condenada.
O desenho da cidade não se pode circunscrever a traçar zonas que definam as transformações do espaço edificado ou a edificar mas, pelo contrário, deve comportar todo um sistema espacial definido por circunstâncias geográficas, ecológicas e culturais inter-relacionadas.
O desenho de uma estrutura verde limitada à distribuição na cidade de parques e jardins públicos e ao embelezamento com plantas ou aos “arranjos paisagísticos” e outros ornamentos, deve ser substituído por um desenho global que se inspire na natureza, na cultura e na paisagem, desenvolvendo forças que permitam a vida e respondam à inquietação estética e às necessidades sociais e culturais da actualidade.
O Plano Verde é um elemento fundamental na concepção dos espaços exteriores da cidade cuja autonomia de desenho é exigida pela natureza biofísica e cultural que lhe é própria e pela prática das artes que desde há muito servem a construção da paisagem viva.
É, no entanto, necessário estender a todo o território urna política de ordenamento que possibilite a biodiversidade, o equilíbrio ecológico e a polivalência dos espaços e em que não se deverá esquecer o perfil das vilas e das cidades. É necessário realçar que as cidades e vilas, ordenadas como conjuntos orgânicos a que corresponde sempre um certo princípio de organização social, nasceram integradas na paisagem rural.
Os espaços verdes da cidade do século XXI, mais do que áreas residenciais implantadas como ilhas no interior do edificado, deverão, pelo contrário, organizar-se em corredores que, percorrendo a cidade, permitirão a existência de percursos e espaços de lazer, recreio e desporto livre, até se integrarem nas paisagens tradicionais dos campos limítrofes, constituindo com elas uma estrutura contínua que garantirá a sustentabilidade ecológica e física de toda a região.
O novo conceito de espaço verde, para além de continuar a apoiar-se numa concepção estética que exalta o “génio do lugar” deverá ser polivalente quanto a protecção, recreio e produção. Trata-se da concretização da ideia de continuum naturale e sua interpenetração com o contínuo edificado numa concepção global de paisagem.
A criação da paisagem global exige uma política urbanística onde o espaço natural e o espaço edificado tenham valor idêntico. Por esse facto, a estrutura verde não deverá ser concebida à posteriori concretizada num mero “decorativismo vegetal”, em “arranjos paisagísticos”, na “vegetalização” e “enquadramento” de infra-estruturas ou em “paisagismos pictóricos”, mas sim concebida como uma obra de arquitectura paisagista que se apoia numa participação interdisciplinar.
Nota Final
O que une todas estas referências e citações? Julgamos que o humanismo integral, talhado na forma-conteúdo da ecologia humana, à medida de um homem único, onde tudo converge, a ciência e a técnica, a arte e a cultura, a estética e a ética, o todo numa mesma pessoa singular, o Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles.
Vivemos, hoje, um movimento permanente de dissolução e recreação de sentido. O espaço é uma sucessão interminável de formas e conteúdos, produzidos e reproduzidos continuadamente. Acreditamos, porém, que ninguém será capaz de eliminar a complexidade do real, a aleatoriedade da natureza e a imprevisibilidade humana e que estes factores podem ser muito úteis ao desenho e à gestão de sistemas territoriais complexos.
Neste sentido, um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento da agricultura da 2ª ruralidade residirá na inibição ou no receio que sentirmos em enfrentar as alternativas ao modelo dominante de agricultura, em ir à redescoberta, sem quaisquer medos, da nossa exclusão e contra-racionalidade. Se formos capazes de assumir esta contra-racionalidade, iremos, também, redescobrir muitos sistemas territoriais em espaços geográficos que já considerávamos não-lugares, pois mesmo nos espaços mais críticos da baixa densidade há uma razão orgânica e virtuosa e um génio dos lugares que podem irromper a qualquer momento, se forem devidamente “provocados”. Estes sistemas territoriais (ST) serão de geografia muito variável e podem acolher territorialidades muito diversas e pouco comuns.
Gonçalo Ribeiro Telles resume na sua obra essa razão orgânica e virtuosa e esse génio dos lugares, uma genuína estética da paisagem e poesia da natureza.
Universidade do Algarve
(excertos do meu livro “A caminho da 2ª ruralidade”, dedicado a Gonçalo Ribeiro Telles)