Não tem quase poder, senão o poder da influência a conquistar pela palavra.

Mas foi assim que António Guterres fez a maior parte da sua carreira política e internacional, falando, expondo, convencendo, persuadindo. Negociando.

Nas Nações Unidas, houve vários tipos de secretários-gerais:

Os dinâmicos e interventivos, dados a iniciativas independentes e até fora das previsões da Carta das Nações Unidas, como foi Dag Hammarskjold; os politicamente comprometidos, como terá sido U Thant, alinhado com as questões do desenvolvimento e em confronto com os grandes poderes ocidentais; os activos e reformistas, incluindo do funcionamento da organização, como Koffi Annan, crítico da intervenção americana no Iraque, prémio Nobel da Paz em 2001; os passivos e contemporizadores, dados à discrição, como o actual Ban Ki-Moon, a quem Guterres vai suceder.

Que lições a tirar, pelo secretário-geral português, das experiências dos seus ilustres antecessores? Talvez se resumam em três pontos-chave:

  • Sendo o poder da palavra o mais importante, é pela palavra, e por uma palavra assertiva e clara, que o secretário-geral da ONU pode conquistar o poder da influência sobre um Mundo crescentemente instável e perigoso.
  • O peso da “máquina” da organização interna é um problema persistente e que nenhum secretário-geral pode ignorar, sob pena de, para usar um coloquialismo comum, ser “engolido” por ela.
  • Não é possível enfrentar os poderes do Mundo a partir da cadeira de Nova Iorque, ou pelo menos todos ao mesmo tempo, ou quiçá mais do que um de cada vez, sob pena de se ser por eles esmagado, mas também de pouco serve um secretário-geral amorfo e inactivo (ou melhor, serve para alimentar as vozes daqueles que consideram a ONU inútil).

António Guterres, o português – e quantas vezes estas palavras vão estar associadas no próximo-futuro, para nosso orgulho e contentamento -, conhecerá melhor do que ninguém esta trilogia. A sua experiência ao serviço da ONU preparou-o para as funções que agora vai exercer, a sua preparação para vencer as cinco rondas da competição ao cargo demonstrou sobretudo o profundo conhecimento sobre o que é preciso fazer como titular do cargo e sobrelevou apriorismos poderosos sobre quem devia ser… o titular do cargo.

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É frágil o escasso poder do homem que depende do tesouro alheio para financiar as suas iniciativas e está preso numa teia impiedosa constituída por cinco poderes armados de veto, que o podem impedir de fazer seja o que for. É frágil e a um tempo imenso, o extraordinário poder do homem que, do 38º andar do edifício sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, vai ter uma visibilidade planetária, sabendo que as suas palavras e actos serão escrutinados profunda e permanentemente; do homem cujo rosto será o rosto do Mundo durante os próximos 5 anos, pelo menos.

São grandes as expectativas sobre a prestação de António Guterres, o português. Espera-se que ele reforme as Nações Unidas, como em certa medida fez como Alto-comissário para os refugiados no sector que chefiou durante dez anos. Espera-se que traga de novo prestígio e credibilidade à organização, abalada por décadas de impotência, braços de ferro com as potências do Conselho de Segurança e dramas e crises relativas aos Secretários-gerais, como Kurt Waldheim, Boutros Ghali (cujo segundo mandato foi vetado pelos EUA) e o próprio Koffi Annan, envolvido em controvérsia no final do seu mandato. Espera-se que esteja à altura do prestígio que o cargo ainda tem, como líder e porta-voz de uma organização que venceu o Nobel em 2001 (conjuntamente com o seu secretário-geral) e que tem como objectivos manter a paz internacional, estabelecer relações amistosas entre as nações com base no princípio da autodeterminação, estimular a cooperação para resolver os grandes problemas internacionais e ser um pólo congregador do esforço dos Estados em busca dos seus objectivos.

Espera-se de Guterres, no cumprimento desses objectivos, que contribua para a solução dos grandes problemas internacionais. E que problemas são! A lista é imponente:

Crise dos refugiados; guerras e conflitos em regiões como o Médio-Oriente e África sub-sahariana; ameaça do Daesh e de outros grupos radicais islâmicos; crescente desigualdade no Mundo, entre os que mais possuem e os que pouco têm; o concomitante aumento da exclusão; aquecimento global e tantos outros. Entre estes, os outros, os menores não serão decerto os relacionados com as novas tendências políticas em tantos países do Ocidente, a começar pelos Estados Unidos, onde cresce a onda do populismo e dos nacionalismos exacerbados e, com eles, a tentação do proteccionismo, dos muros, da exclusão do Outro.

Guterres sabe que conta com um Mundo mais avesso a soluções globais para os problemas comuns, de que a ONU é o mais óbvio e natural dos paradigmas. Mais do que nunca, mais do que boa parte dos seus predecessores, é pela palavra, com o poder que advém da sua autoridade moral e magistério de influência, mas também pela negociação e com uma habilidade que os portugueses bem lhe conhecem para negociar consensos e aproximar extremos, que o novo secretário-geral da ONU pode ter sucesso.

Que as esperanças da comunidade internacional podem ser confirmadas.

Que os pobres e desvalidos do Mundo podem receber alívio.

Quando se apresentou como candidato ao cargo que vai ocupar em Janeiro, António Guterres, o português, disse ao que vinha: “Estamos a gastar 70% dos nossos recursos em operações de manutenção de paz onde não há paz para manter. Face aos impactos das mudanças climáticas, dos problemas causados pela desigualdade e falta de inclusão, prevenir, focando nos pilares da actividade da ONU de uma forma holística, é claramente a minha prioridade pessoal”.

Prevenir: é com base nessa ideia, tendo em conta os objectivos e os princípios da Carta das Nações Unidas, que António Guterres, o português, se pode revelar um Homem do Mundo e para o Mundo. Uma excelente notícia para as Nações Unidas e para que as nações possam estar (mais) unidas do que nunca.

Este é o trabalho mais impossível do Mundo, disse há décadas o primeiro secretário-geral da ONU, o norueguês Trygve Lie. Talvez, mas só talvez, a pessoa que vai ocupar o lugar em Janeiro de 2017 seja a indicada para retirar da palavra impossível o morfema gramatical “im”: António Guterres, o português secretário-geral da ONU.