A barragem do Alqueva, o maior lago artificial da Europa e contra a qual muitos se enfureceram e na altura se manifestaram contra, foi e é uma das mais importantes obras hídricas de sempre, senão a mais importante, em Portugal.

Esta barragem, se bem que com o objetivo primeiro (ou inicial) de permitir regadio no baixo Alentejo, desde sempre fortemente depauperado pela seca, é também um reservatório de água gigantesco a céu aberto. É, claramente, a maior reserva de água do país. São só 1.100 Km de margens e 250 Km2 de albufeira.

Esta mesma albufeira comporta, em termos globais, cerca de 4,15 mil milhões de metros cúbicos de água. Na prática estes valores serão os máximos e não os médios. O nível observado (no Alqueva) em Novembro de 2017 era de 2,9 mil milhões de metros cúbicos (cerca de 70% da sua possibilidade máxima que são os tais 4,15 mil milhões de metros cúbicos de água).

A par com este colosso de água temos ainda, em termos de bacias hidrográficas e sem falar em águas subterrâneas, outras menos expressivas mas, em todo o caso, importantes: bacias do Arade, do Ave, do Cávado e costeiras, do Douro, do Lima, do Mira, do Mondego, das ribeiras do Algarve, das ribeiras do Oeste, do Sado e do Tejo.

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Todas as águas superficiais destas bacias somam a bonita quantia de cerca de 11 mil milhões de metros cúbicos comportados (possíveis). Em Novembro de 2017 a quantidade, por baixo, nestas bacias era de cerca de 7 mil milhões de metros cúbicos armazenados. Ou melhor, grosso modo, de cerca de 60% dos recursos possíveis superficiais totais.

Seria um erro considerar que toda esta água seria apenas para consumo humano. Demasiado óbvio. A atividade económica, em particular a agrícola, precisa de boa parte desta água. A geração de energia, embora muita água possa ser recuperada, idem. As indústrias precisam igualmente de muitos dos metros cúbicos de entre estes 7 mil milhões de metros cúbicos atuais.

Ainda assim, façamos umas contas por alto. O consumo humano é de cerca de 220 a 250 litros de água por dia. Em metros cúbicos, e pelo máximo, daria qualquer coisa como 912,5 milhões de metros cúbicos por ano para 10 milhões de habitantes. Ora estes 912,5 são bem inferiores aos atuais 2900 milhões que estão disponíveis no Alqueva e bastante inferiores aos 7000 milhões disponíveis em Novembro em todas as bacias acima contabilizadas. Representam nada mais nada menos que, números redondos, 31% do Alqueva de hoje e 13% dos recursos hídricos totais em Novembro (Portugal Continental).

Em todo o caso e para além destes recursos superficiais ainda existem os recursos hídricos subterrâneos. Uma parte da água de consumo (cerca de 30%) vem de fontes subterrâneas.

Todas estas fontes, repita-se, não serão apenas para consumo humano, bem vistas as coisas. Nem serão os consumos mais importantes pois a economia, do primário ao terciário, consome a maioria da água. Em todo o caso, é bom saber que ainda temos água. Contas feitas por alto e ainda temos…alguma água.

Portanto, ainda que o clima (ou a mudança dele) contribua para nos depauperar, ainda que jogue contra nós, talvez possamos aguentar, sem grandes histerismos desnecessários e campanhas radicalizadas, mais algum tempo até que o inverno possa contribuir para a reposição hídrica necessária: restabelecer níveis de albufeiras, realimentar aquíferos e níveis freáticos nos solos, aumentar humidades e regular ciclos de origens e consumos de água. E começar desde já a trabalhar nas soluções estruturais, evitando pensamento com base nas dores do momento.

Podemos, de facto, estar a mudar de clima e de paradigma quanto à quantidade do recurso água de que dispomos. Se chove cada vez menos e se o clima está alterado ou a alterar-se pode ser que não seja apenas nos cenários macro-económicos que possamos ser considerados África+1 (África mais um). Para trazermos algum realismo a esta frase basta olharmos para o nível da dívida e para mais dois ou três indicadores para percebermos que estamos mais próximos de África (Norte de África) do que do centro da Europa.

Tudo isto e aqui chegados apenas para dizer que o mais incompreensível na história das roturas de águas em certos pontos do país, assistindo-se a operações espetaculares de camiões cisterna e composições de água que rumam a repor os níveis em certas áreas mais depauperadas, nomeadamente através da captação noutros locais, seguida de transporte rodoviário e posterior lançamento superficial (com perdas enormes, diga-se), é um cenário pouco edificante. Talvez necessário face às circunstâncias mas pouco edificante. E muito mais próximo de África do que da Europa a que pertencemos.

E qual é a causa para este sintoma? Tal como no combate aos fogos florestais falta (e faltou) uma cadeia de comando única entre todas as forças e recursos mobilizados (isto sem falar em prevenção), o que implica centralização, na água falta colocar os sistemas e múltiplos sistemas regionais e municipais a comunicar entre si. Descentralizados pecam por apenas abastecer as suas regiões mas não podem, se em presença de água, abastecer regiões próximas ou até mais longínquas depauperadas.

Um especialista no assunto dizia-me que, no caso do Algarve havia 2 sistemas distintos, Barlavento e Sotavento. De um lado origens, do outro maior consumo. A resolução do problema passou por se fundirem os sistemas tendo-se construído uma primeira estação elevatória reversível que permitiu e permite transferir água tratada de um lado para o outro, de acordo com as necessidades. E que mais tarde viria a construir-se uma segunda. Se isto acontece agora “no mesmo sistema” também é possível acontecer entre sistemas isolados que passem a comunicantes. E também é possível que haja puro transporte por pipeline. Dir-se-á que terá que haver investimento. Verdade. Mas o investimento faz parte da equação perante problemas destes. Porque não se fez este investimento no passado? Por exemplo quando, ao fim de 50 anos com um projeto nas mãos, se resolveu finalmente avançar com a barragem do Alqueva?

O que temos, no final do dia, é menos água. Mas água na mesma. Muito embora não distribuída.

Assim, o que nos falta está muito mais do lado da interconexão entre pontos sendo ou devendo ser este um dos caminhos, senão o principal, que deve presidir à gestão dos recursos hídricos. A interconexão dos sistemas o homem pode dominar. A chuva, admitamos que é complexo. O stock de água rompe, então, não por falta de água no sistema total continental mas porque há vários subsistemas descentralizados e o stock descentralizado sofre as penalizações da não comunicação com um “centro” que, neste caso, será uma outra rede com excedentes ou com stock não depauperado. Não rompe só por falta de chuva ou por falta de água. Como se viu, existe água.

Ver as imagens televisivas de camiões cisterna a abastecer zonas de recolha de água superficial é um espetáculo, de facto, pouco dignificante. A pergunta principal, e que ninguém faz não se percebe bem porquê, é porque é que os sistemas, não todos mas alguns, não comunicam?

Porque é que as albufeiras (o Alqueva é apenas um exemplo), que são armazéns de águas superficiais, não comunicam com outros sistemas de águas? Se a gestão das origens é fundamental é não menos importante a gestão das interconexões e dos destinos. Podemos ter armazéns descentralizados mas com isto não resolvemos a falta de água, de stock, em alguns pontos do país.

Não se pede que isto seja feito de modo a criar depósitos centrais e centralização absoluta das redes de água. Mas pede-se que haja backups e comunicação entre as redes que apresentam excedentes e aquelas que usualmente enfrentam roturas mais cedo. É também esta a forma de pensar recursos e sobretudo de racionalizar a água que temos.

Se consumíssemos menos água seria bom? Sim, seria.

Se fossemos mais racionais na utilização dos recursos seria bom? Sim, seria.

Mas se fossemos mais visionários já teríamos feito, tal como já fizemos o Alqueva, a ligação de algumas redes a outras no sentido de providenciar backups interessantes a pontos onde haja menos recursos hídricos.

Tudo junto e há em Portugal um problema grave. Primeiro confunde-se a centralização dos sistemas (empresariais, leia-se) com uma espécie de economia centralizada que falhou. Nada tem uma coisa a ver com outra, enfim. Depois, não se percebem as principais oportunidades trazidas pela centralização em algumas áreas da economia e da gestão dos recursos. E isto é uma pena. Estamos a falar de uma matéria da área das operações. A que Peter Drucker apelidou de “The Economy’s Dark Continent”. Simplesmente, para Drucker esta era já uma matéria pungente em 1962. Para Portugal, digo eu, é uma matéria pungente há muitos anos mas apenas se está a ter consciência vagarosa dela (oxalá se tenha!), em termos de águas e de fogos, em 2017, 55 anos depois. Com uma diferença colossal. 55 anos depois e ainda não sabemos o seu significado apesar da dor que lhe está associada.

Portanto, melhor esquecer a ideia de que Portugal não tem água. Melhor começar a pensar que sim, tem alguma água, está é mal distribuída. Existindo pontos que, de facto, não têm água suficiente. Mas que existem soluções para isso. Claro que implicam investimento mas, não menos, visão.

Professor Catedrático, NOVA SBE – NOVA School of Business and Economics, crespo.carvalho@novasbe.pt