1. É para mim incompreensível que partidos, e outras instituições da sociedade civil, que desde o PREC e os debates da Assembleia Constituinte defenderam correctamente as liberdades fundamentais de ensino, e os correspondentes direitos sociais, contra as várias argumentações jacobinas defensoras de um monopólio estatal do ensino escolar, se deixem actualmente reduzir nas discussões de umas poucas dezenas de contratos de associação, que não passam de umas insignificantes e falsas migalhas de liberdade dadas a algumas poucas escolas privadas — porque, pelo seu próprio conceito, os contratos de associação não passam de contratos a prazo para substituição temporária e condicional de escolas da rede do Estado.

2. Se a questão das liberdades individuais de ensino, em Portugal, liberdades constitucionalmente garantidas às pessoas e às escolas privadas, se limita à reivindicação política, perante o Estado, de umas «humilhantes» negociações de contratos anuais ou trianuais de associação de umas dezenas de escolas (embora aí se comprometam os direitos e interesses honrosos e legítimos de alunos e suas famílias), então o que apetece dizer, parafraseando o ex-constituinte Jerónimo de Sousa e actual Secretário-geral do PCP, é que não vale a pena dar muito mais para esse peditório.

3. Alguém poderá compreender que, num país civilizado onde, desde há pelo menos 25 anos, a lei vigente diz expressamente que o Estado deve assegurar a gratuitidade universal do ensino obrigatório, tanto nas escolas do Estado como nas escola privadas (como tive a oportunidade de demonstrar em artigo recente no jornal Observador), as únicas guerras políticas pelo princípio da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino nas escolas privadas se limite a uma discussão «poucochinha» de alguns contratos de associação?

4. Não quero ser deselegante (enquanto ex-deputado Constituinte pelo PPD e depois ex-deputado em anos seguintes da primeira legislatura da Assembleia da República), ao pedir licença para recordar o que os então responsáveis pelo PSD e pelo CDS declararam, na defesa da liberdade de ensino dos cidadãos e das escolas privadas. Aliás, de acordo com o que constava, e ainda consta, dos programas partidários respectivos. Seria pedir muito que se continue hoje a honrar essa batalha?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

5. Se, na Constituinte, o PS votou decisivamente com o PCP, a favor do monopólio estatal do ensino (com a redução da escola privada a uma papel supletivo do Estado), é preciso dizer que foi com o PS que o PPD-PSD e o CDS-PP vieram pouco depois a reverter essa concepção totalitária e estatista, aprovando na Assembleia da República, logo em 1979, apenas três anos depois da Constituinte, e contra a oposição feroz do PCP, as primeira leis de verdadeira liberdade educativa para os privados. E recordem-se esses diplomas, que ainda estão em vigor ou textual ou materialmente: a Lei nº 9/79, chamada Lei de Bases do ensino particular e cooperativo, que impôs a aprovação de um Estatuto para o ensino particular e cooperativo que foi aprovado no seguinte (DL 553/80); e a Lei nº 65/79, chamada Lei da Liberdade de ensino, que criou um Conselho para a Liberdade do Ensino, cujas funções pertencem hoje ao Conselho Nacional da Educação (o qual visivelmente as não tem exercido). E mais ainda do que isso: com o PS, o PSD e o CDS, essa concepção de Estado-educador foi revogada pelas revisões constitucionais posteriores.

6. Aquelas duas primeiras leis, e outras mais que se seguiram e estão em vigor, estão cheiínhas de disposições que garantem inequivocamente que os alunos das escolas privadas não podem por isso ser discriminados pelo Estado, nas políticas públicas de educação escolar. Tendo direito à gratuitidade do ensino obrigatório nas escolas privadas. Mas porque são poucos, hoje, os que, honra lhes seja, se importam e têm lutado por isso? E porque nem mesmo as escolas privadas e as suas associações, de há uns anos para cá? — talvez por causa dos efeitos perversos dos contratos de associação…

7. No limitado espaço de que aqui se dispõe, vou apenas transcrever um excerto do Parecer nº 1/89 do Conselho Nacional da Educação, precisamente sobre o projecto de diploma que veio a instituir a gratuitidade do ensino obrigatório também nas escolas privadas: o DL nº 35/90. O projecto legislativo original que deu entrada no CNE só instituía a gratuitidade nas escolas públicas e nas privadas com contrato de associação. O Parecer, aprovado com esmagadora maioria, afirmou que a gratuitidade tinha de ser aplicada em todas as escolas, sob pena de discriminação inconstitucional entre alunos. A argumentação do parecer do CNE foi a seguinte (mantém-se a numeração dos parágrafos).

Parecer do CNE:

1. «Neste artigo 1º, o âmbito de aplicação do diploma (e, portanto, do regime da gratuitidade de ensino e da atribuição de meios de acção social escolar) exclui as crianças e alunos que frequentem estabelecimentos particulares ou cooperativos sem contrato de associação com o Estado. Esta exclusão levanta uma questão fundamental, que pode enunciar-se assim: em matéria de direitos fundamentais, pode haver discriminação baseada na distinção entre estabelecimentos estatais e privados? A resposta só pode ser negativa.

2. «Considere-se, em primeiro lugar, a universalidade da gratuitidade da escolaridade obrigatória. A Constituição atribui ao Estado a “incumbência” de “assegurar o ensino básico universal, obrigatório e gratuito” (al. a) do nº 3 do art. 74º).
«O direito que daqui resulta é um direito fundamental: o art. 74º está incluído no capítulo III do Título III da Parte I da Constituição, intitulada “Direitos e deveres fundamentais”. Assim, como direito fundamental que é, a gratuitidade do ensino obrigatório tem de ser facultada a todos, sem excepções, isto é, sem condições discriminatórias negativas. Logo, não podem dessa gratuitidade ser excluídos os alunos das escolas particulares e cooperativas, tenham ou não contrato de associação.

3. «Acresce que a referida exclusão é uma verdadeira e própria discriminação em função de uma escolha que a Constituição e a lei garantem e protegem, ou seja, em função da escolha de escola no exercício da liberdade de aprender e de ensinar garantida pelo art. 43º da Constituição e pelo art. 2º da Lei de Bases (maxime nº 3).
«Assim, o fundamento da discriminação é de todo em todo ilegítimo, à face da Constituição e dos princípios da liberdade de ensino. Seria perfeitamente contraditório com a liberdade de aprender e ensinar e com o princípio da liberdade de escola particular, constantes da Constituição, que a opção pela escola particular acarretasse a exclusão do cidadão do gozo de direitos fundamentais e gerais a todos reconhecidos, ou de formas de protecção devidas por razões fundamentais e de interesse público.

4. «A este propósito, deve rejeitar-se o argumento, por vezes invocado, da escassez de meios do Estado. Este argumento, a merecer aceitação, só poderia conduzir à repartição por todos os cidadãos igualmente, das restrições que houvesse de impor; ou, no máximo, a discriminações dos cidadãos com base na diferença das suas condições materiais. Mas nunca a qualquer discriminação com base na distinção entre escolas, pois que estas não indiciam nenhum critério que justifique uma discriminação fundamentada. É inegável que muitos cidadãos, sem necessidades materiais, e até mesmo ricos, frequentam escolas públicas; e outros, modestos e até mesmo pobres, frequentam escolas particulares.

5. «Convém também esclarecer que a tese que neste Parecer se defende nada tem a ver com o princípio da adequação das discriminações positivas. Só uma confusão imperdoável poderia confundir a gratuitidade do ensino nas escolas públicas (e nas escolas particulares com contrato de associação) com a aplicação de discriminações positivas.
«Com efeito, o critério legislativo em apreciação não beneficia os que são necessitados, não distingue entre os que necessitam e os que não necessitam; muito diferentemente, ele recusa esses benefícios aos necessitados que frequentarem [ou quiserem frequentar] escolas particulares sem contrato de associação, concedendo-os aos não necessitados que frequentarem escolas públicas. Não se fale, portanto, em discriminações positivas, a este propósito, a favor de cidadãos necessitados, visto que o que projecto consagra é uma discriminação entre escolas. A graduação de discriminações positivas, no interior do âmbito de aplicação do diploma, contém-se de resto, em disposições ulteriores, como as dos arts. 5º, 12º, nº 3, 15º, nº 1, 17º, etc.

6. «Mutatis mutandis, a tese que neste Parecer se defende vale igualmente para a educação pré-escolar e para a escolaridade não-obrigatória. Torna-se necessário, em todos os aspectos do sistema educativo, respeitar o princípio básico de que o reconhecimento de direitos e a atribuição de apoios estatais em matéria de educação e ensino devem sempre referir-se aos cidadãos, com respeito pelo princípio da igualdade, sem discriminações injustificadas com base na escolha de escola privada.

7. «De acordo com as considerações precedentes, fica desde já prejudicado o art. 21º do projecto em apreciação, que colocava os alunos das escolas particulares e cooperativas sem contrato de associação numa posição jurídica diferente e injustamente discriminada relativamente aos alunos das demais escolas. E nem se diga que os critérios aí consagrados minoram essa discriminação; ao contrário, a referência à equidade só vem pôr a nu a incongruência. Com efeito, que espécie de outra equidade poderá realizar-se que não seja uma igualdade de tratamento para todos os cidadãos?!» .