Ontem, o caso BES fez o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, passar mais de três horas no parlamento. Contou o que sabe, explicou o que fez. Desde Setembro de 2013, tentou libertar o BES do GES. Ricardo Salgado não o deixou. Por fim, teve de impor uma “resolução” de acordo com a nova legislação europeia. Foi a forma que encontrou de, simultaneamente, evitar a falência do banco (que arrastaria provavelmente todo o sistema bancário), proteger os depositantes e poupar os contribuintes.

A “resolução” foi aceite, no sentido em que não houve corrida aos bancos. Ficaram, porém, muitas dúvidas: sobre o sacrifício dos pequenos accionistas e credores subordinados, sobre a real imunidade dos contribuintes ou sobre o tempo que demorou a parar Salgado. A propósito, Costa lembrou a dificuldade da sua posição. Viu tudo no “fio da navalha”. Actuar demasiado tarde era perigoso, mas actuar demasiado cedo também. E tinha de proceder com base em informação certificada, e não nos palpites e rumores que bastam à ligeireza da verrina nacional.

Esta é a história do governador. Para as oposições, porém, uma navalha não chega. A sua história, subentendida nas perguntas, é outra. Ninguém o disse explicitamente, mas por agora parece ser assim: o governador sabia há muito tempo dos problemas do BES, mas fechou os olhos, para não perturbar a “saída limpa” que interessava ao governo. Em breve, porém, poderá muito bem ser o contrário: o BES nunca teve quaisquer problemas, e tudo isto foi inventado para consumar o “PREC de direita”. Em ambas as versões, o vilão é o mesmo: Carlos Costa, que teria destruído uma instituição e arruinado milhares de aforradores, apenas para servir o governo.

Vamos então meter todas as navalhas na história, como a nossa oligarquia gosta. O que é que faz da queda do BES uma história política? Não é só o facto de o governo ter alterado um decreto-lei. É o facto de, num determinado momento da nossa democracia, uma parte da oligarquia partidária ter-se convencido de que para governar não bastava estar no governo: era preciso estar em todos os lugares do Estado, e ainda nas grandes empresas, nos bancos, na comunicação social e na justiça. Governar tinha de ser sinónimo, não só de dar empregos e de arbitrar subsídios, mas também de decidir negócios, sempre com a garantia de que a justiça nunca daria seguimento a suspeitas, nem a imprensa faria eco de críticas. A facção socrática do PS foi quem mais longe levou este projecto de concentração e confusão de poderes, entre 2005 e 2011. Ricardo Salgado, que sempre concebeu a banca como apêndice da política, aderiu. A crise de 2011 estragou o arranjo. Mas para os socráticos, não houve crise nenhuma: houve apenas uma conspiração, promovida pelo presidente da república, para lhes tirar o poder. E agora, houve outra cabala, desta vez orquestrada por Carlos Costa.

O que está em causa, no entanto, não é apenas o socratismo. O que está em causa é o que tornou possível o socratismo, a começar pelo peso do Estado e pela promiscuidade opaca das elites nacionais. A crise e a decorrente intervenção europeia ajudaram a quebrar alguns dos circuitos instalados. Mas não chega. Há que, dentro da lei, separar e autonomizar a política, a sociedade e a economia, e ao mesmo tempo desenvolver sistemas eficazes de regulação e de justiça. O modelo europeu de “resolução bancária” é criticável, mas é um princípio, não só de reforma financeira, mas de reforma política. Senão, continuaremos com histórias de navalhas.

 

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