Mary Wallstonecraft Shelley nasceu em Londres, em 1797. A mãe, Mary Wallstonecraft, era uma adepta entusiasta das Luzes e da Revolução Francesa: escreveu em 1790 uma crítica às ideias de Edmund Burke e, em 1792, um dos primeiros manifestos feministas, “A Vindication of the Rights of Woman”. Aí se afirmava, entre outras temeridades, que “We [women] cannot, without depraving our minds, endeavour to please a lover or husband, but in proportion as he pleases us”. (Peço desculpa aos puristas por não traduzir, mas não sou capaz de verter em português a força desta frase.)

Mary Wallstonecraft era uma mulher brilhante e um espírito livre, que contou, entre as suas conquistas, Erasmus Darwin, naturalista que se interessou pela evolução das espécies muito antes do neto, Charles Darwin, o poeta William Blake e William Goldwin, um teórico do utilitarismo e precursor das doutrinas anarquistas. Godwin foi o pai de Mary Shelley. O avô Darwin será citado no prefácio da novela de Mary, “Frankenstein or the Modern Prometheus”, por ter considerado que o episódio central do livro (a saber, a ressurreição pelo Dr. Victor Frankenstein de um corpo morto feito de vários corpos, recorrendo a um forte estímulo eléctrico) “não era impossível” (“not of impossible occurrence”).

Mary Shelley teve a ideia para a novela durante uma viagem pela Europa Central que fez em 1814 na companhia de Byron e de Percy Shelley, seu amante e futuro marido. “Talvez um corpo possa ser reanimado”, anotou Mary na introdução à edição de 1831. “O galvanismo aponta nesse sentido.”

A referência a Galvani (1737-98) não era fortuita. Galvani, um médico e naturalista italiano, realizara nos anos 1780 uma série de experiências com a electricidade e os seus efeitos nos corpos, entre eles a célebre experiência em que pernas de rãs mortas se contraíam quando lhes era aplicada uma corrente eléctrica. Galvani concluíra daí que uma forma qualquer de “electricidade animal” estava na base da vida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

3c19166v

Tão pouco era acaso a ideia de usar esses efeitos da electricidade para reanimar um corpo morto. O fascínio, entre o mórbido e o científico, pela ideia da ressuscitação, era vulgar na época e alimentava inclusivamente cartoons e litografias.

Um sobrinho de Galvani repetiu as experiências do tio no cadáver de um tal George Forster, enforcado em Newgate em 1803. A fazer fé no relato do Newgate Calendar, o corpo “abriu um olho”, “ergueu e cerrou a mão direita” e “as pernas puseram-se em movimento”. E, durante o século XVIII, médicos e naturalistas fundaram no Reino Unido sociedades que tinham por objectivo ensinar e aplicar diversas técnicas de ressuscitação em mortos por afogamento ou outros tipos de sufocação. Entre essas técnicas incluíam-se “sais de cheiro” (de eficácia duvidosa) e a inevitável electricidade. Em 1747, um tal Dr. Rowland Jackson publicou mesmo “A Physical Dissertation on Drowning”, em que se descreviam e aconselhavam tais técnicas, particularmente aos “cirurgiões da Marinha e do Exército”, que tinham “muitas oportunidades para praticar”.

A própria família Shelley cruzou o seu destino com as experiências de “ressuscitação”: em 1816, o ano em que Mary começou a escrever a novela, a primeira mulher de Percy Shelley, Harriet, afogara-se e fora sujeita a tentativas de reanimação na London Society, embora sem sucesso.

Tudo isto apelava à imaginação dos românticos. É, não esqueçamos, a época de Poe e de Hoffmann. A novela de Mary Shelley ocupa contudo um lugar muito especial na galeria de histórias de “horror” em que a época foi prolífica, incluindo aquelas que o tempo e o favor do público fez sobreviver, como o “Drácula” de Bram Stokes ou o “Strange Case of Dr. Jeckyll and Mr. Hyde”, e não deve ser confundida com as versões que o teatro e, depois, o cinema, com a grosseria própria da indústria, construíram, em que o “monstro” (como a autora o designa) perdeu a alma e o pobre médico atormentado pelo remorso foi reduzido a um sábio louco. A novela continua a exercer, sobre quem se dá ao trabalho de a ler, um fascínio especial. Além de uma sobriedade narrativa digna dos mestres, de Poe a Borges, a história do Dr. Victor Frankenstein continua a reenviar-nos para dilemas e perplexidades que o tempo não tornou menos instantes: os limites éticos da aplicação das tecnologias disponíveis, o sentido e a legitimidade de prolongar ou reverter situações que, não sendo “morte”, também já não são “vida”. As respostas não são evidentes nem simples, como não foi a escolha de Prometeu, que Mary Shelley, sagazmente, convoca no título da sua novela.

(*) Título de um poema de Walt Whitman e de um conto de Ray Bradbury.

Médico patologista