A separação entre a fé e a razão (ou entre a igreja e o estado) a partir do século XVIII foi decisiva para a transformação da civilização ocidental numa das mais racionais e, por isso, livres e prósperas. O princípio transitou do pensamento iluminista para o quotidiano comprovando, se necessário fosse, a centralidade do pensamento no destino dos povos.

Ainda assim, a ambivalência da condição humana persistiu, nos séculos seguintes, na reinvenção de fórmulas de pensamento ancestral. Periféricas no século XIX, os caminhos contemporâneos de reversão da racionalidade acabaram por invadir o âmago das sociedades ocidentais. Se nesse percurso as relações entre a razão e a fé não voltaram a ser problemáticas para benefício mútuo, o inverso ocorreu com as relações entre a razão e o poder ou, escrito de outra forma, entre o intelectual e o político (no sentido moralista-ativista do termo). Essa prolongada simbiose tóxica desembocou, no século XXI, na mais séria ameaça à racionalidade, isto é, à liberdade de pensamento, prosperidade e segurança dos povos.

Na sua génese esteve a sacralização (ou veneração acrítica) do pensamento de alguns dos grandes intelectuais, por isso mesmo convertidos nos socialmente mais influentes mesmo para além da tradição racional europeia, condicionando a contemporaneidade das sociedades africanas e, em parte, das asiáticas. Os frutos dessa tendência foram amadurecendo paradoxalmente nas universidades, parte significativa delas hoje sedes de um reinventado puritanismo místico-tribal. A partir do mundo académico ocidental, a disseminação do irracionalismo intensificou-se ao ritmo da massificação e alargamento em número de anos da frequência escolar.

Quem possua experiência docente não terá dificuldades em identificar atropelos recorrentes a princípios elementares da construção racional de conhecimentos. A gravidade resulta desses atropelos serem gerados no interior de sistemas de ensino controlados pelo ‘politicamente correto’, manifestação místico-tribal dos tempos que correm com os seus vícios, intolerâncias e violências.

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Sugira-se a estudantes universitários ou de final do secundário que apresentem propostas de investigação de fenómenos sociais sensíveis. Anoto que se trata de indivíduos que já passaram por ciclos elementares de estudos de filosofia, história, literatura, entre outros. Não se está, por isso, no domínio do mero senso comum.

Cito exemplos. Se um estudante ambiciona investigar identidades de género, não é incomum que proponha logo à partida captar a ‘discriminação dos homossexuais’ ou ‘combater a transfobia’. Se a ambição for a de investigar as relações inter-raciais, o enfoque apriorístico será no ‘racismo’, na ‘discriminação das minorias’ ou nos ‘problemas dos imigrantes’. Se os interesses remetem para o mundo laboral, o ponto de partida será a ‘exploração dos trabalhadores’ ou a ‘discriminação das mulheres’.

Os casos-tipo poderiam multiplicar-se e quase nem vale a pena referir os estudos sobre o ‘colonialismo’ ou o ‘neoliberalismo’, patologias particularmente graves.

As tentações apriorísticas referidas seriam legítimas apenas como conclusões de estudos empiricamente sustentados. Jamais podem ser válidas como pressupostos dos estudos. Quem se propõe refletir ou investigar sobre fenómenos que aprioristicamente tipificou não vale a pena fazê-lo, posto que já sabe como os mesmos se caracterizam. Quer dizer que os europeus acabaram subjugados a sistemas de ensino que se moldam a si mesmos e às sociedades que tutelam para reproduzir fórmulas estereotipadas de pensamento pré-racional.

Veja-se o caso-tipo do racismo.

Se em vez de se partir para um estudo dessa natureza com o olhar preocupado em compreender as relações inter-raciais naquilo que elas têm de favorável e desfavorável, considerando o que as diferentes identidades raciais têm de complementar e de tensões no seu interior e na relação com as outras identidades raciais – se em vez disso o ponto de partida for o de investigar diretamente os ‘males do racismo’, os riscos de uma dupla distorção analítica serão muitíssimo maiores.

Em primeiro lugar, será muito provável que existam distorções temporais. O olhar ficará amarrado a um tempo em que o branco era o ‘carrasco’ e o negro a ‘vítima’. Mesmo que a renovação de gerações tenha transformado as características da vida social numa atualidade de uma natureza substantivamente distinta da do passado tornar-se-á improvável captar essa essência. A fuga ao presente é uma marca do pensamento místico-tribal. Com a mente presa ‘in illo tempore’, o investigador irá persistir na busca anacrónica de eternos ‘carrascos’ e ‘vítimas’.

Em segundo lugar, partir aprioristicamente para o estudo do racismo antes de compreender o campo mais amplo das relações inter-raciais forçará a razão a fechar-se sobre si mesma, tomando a parte pelo todo. Essa rutura com a realidade empírica é uma das fontes mais férteis de distorções interpretativas. Relações entre identidades sociais dessa natureza oscilam invariavelmente entre a empatia e o afastamento ou tensão, sendo que ambos os extremos devem ser ponderados por quem queira compreender com racionalidade (quer dizer, com honestidade) a complexidade da vida social. Se o ponto de partida for o de fixar o olhar analítico apenas no extremo negativo do fenómeno (os ‘males do racismo’), mesmo que extremo oposto tenha existido ou exista permanecerá ‘invisível’. O irracionalismo místico-tribal sempre serviu para distorcer, às vezes até ao absurdo, as características do mundo físico impondo-lhe o ‘poder mágico dos espíritos’.

O exemplo do estudo do racismo permite não menos constatar que do universitário (investigador ou professor) ao estudante do secundário as tentações místico-tribais são partilhadas, isto é, trata-se de um fenómeno de irracionalidade massificada gerado pelos sistemas de ensino contemporâneos.

Neste imbróglio civilizacional, a função tutelar do discurso político desempenha papel-chave. Insinuar publicamente a crença em vacas voadoras a partir de um lugar social chave, como o de primeiro-ministro, mais não é do que um sintoma da regressão da racionalidade nas sociedades ocidentais, neste caso por graves responsabilidades de parte significativa das suas elites políticas. Tais ousadias seriam impensáveis há meio século ou mesmo há um século, nem sequer nos países mais periféricos da Europa Ocidental.

Constituindo o racionalismo pré-condição da liberdade, segurança e prosperidade, os povos ocidentais souberam libertar a razão da fé através da laicização dos estados há bem mais de dois séculos, porém entraram no século XXI como quem capitula face a irracionalismos místico-tribais cuja inegável legitimidade social deve ser remetida para os antípodas do funcionamento das instituições tuteladas pelo estado, como o ensino, mas não menos para os antípodas do exercício de cargos públicos.

Em meados do século XX, interpretando e antecipando as consequências das poderosas ameaças à racionalidade alimentadas por pensadores como Platão, Hegel ou Marx, Karl Popper foi incisivo: «(…) Creio que a única atitude que posso considerar moralmente correta é a que reconhece que devemos aos outros tratá-los a eles e a nós como seres racionais.» (‘A sociedade aberta e os seus inimigos’, 2013, Lisboa, Edições 70, vol.II, p.287).